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Mensagens

FIM

(1911) Tomados de temor e de suspeitas, transtornada a mente e os olhos aterrados, nos consumimos e planeamos que fazer para escaparmos ao seguro perigo tão atroz que se aproxima. Mas, erro nosso, não é isso que aí vem. Eram mentiras as notícias (ou não as ouvimos ou entendemos mal). Outra desgraça que não suspeitámos, súbita, fulminante, se abate sobre nós, e indefesos – já não há tempo – nos apanha. Konstantinos Kaváfis 145 Poemas, tradução de Manuel Resende, edição FLOP. 

How are you coping with the coronavirus lockdown?

— So far, so good. We’re up near Corralitos, California, in a shelter-in-place zone, and are doing that. Just staying home. Feels strangely nineteenth century up here. Everything has slowed down and the trees are looking prettier and the sky seems like an old friend whose beauty you never fully appreciated, and so on. Feels like this thing, for all its horrors, might be a chance for the world to take a breath and go, “Wait, why have we been living this way?” (...) * In this, you are, and I am, I hope, like cave people, sheltering a small, remaining trace of fire through a dark period.

Procurar às escuras

E aquilo sobre o qual não devemos deixar de reflectir é a necessidade de religião que a situação faz surgir. É indício de tal, no discurso insistente dos media, a terminologia tomada de empréstimo ao vocabulário escatológico que, para descrever o fenómeno, usa obsessivamente, sobretudo na imprensa americana, a palavra «apocalipse» e invoca, explicitamente, o fim do mundo. É como se a necessidade religiosa, que a Igreja já não está em condições de satisfazer, procurasse às escuras um outro lugar de consistência e o encontrasse naquilo que é, de facto, a religião do nosso tempo: a ciência. Esta, como qualquer religião, pode produzir superstição e medo ou, em qualquer caso, ser usada para disseminá-los. Nunca como hoje se assistiu ao espectáculo, típico das religiões nos momentos de crise, de opiniões e prescrições diferentes e contraditórias, que vão desde a posição minoritária herética (também representada por cientistas de prestígio) daqueles que negam a seriedade do fenómeno até ao

Estado do tempo dentro de casa

Céu limpo, passando a nublado a partir do início da tarde, com possibilidade de ocorrência de aguaceiros e, quem sabe, trovoadas. Ondas de noroeste com um metro, talvez mais. Temperatura da água do mar: 16ºC, mais coisa, menos coisa. O vento, para já, sopra fraco de um dos pontos cardeais, mas talvez mude. Acentuado arrefecimento nocturno.

Coisas concretas

Mas o que me agrada mais em Wittgenstein é, nem sei bem definir isto — uma atração distraída pelas coisas concretas? Nos textos e (talvez) nas aulas, Wittgenstein recorre com frequência a objectos para expor exercícios de lógica. Folheando as notas de “Cultura e Valor” muito depressa, encontro: torre de igreja, árvore, cascalho, mochila, chapéu, palha, pedra, caneta, espelho, poste de sinalização, fechadura, chave, lentes, cavalo, carruagem, carris, argamassa, pedra, gaveta, sapatos, aviões, lantejoulas, porta, dedal, bolhas, montanha, celofane, casa, tesoura, bolo, moeda, estrela, erva. Os substantivos sobressaem pela sua natureza: são extremamente visuais; são cor, forma e função. Mas sobressaem também porque conseguem criar uma divergência qualquer dentro da frase — tocam. Tocam como uma campainha de recepção. Por exemplo, nesta nota (que é uma das minhas preferidas do livro): “Procurar o erro num argumento duvidoso e esconder o dedal.” Apesar de escondido, o dedal fica a ressoa

Coisas abstratas

O que Wittgenstein escreve sobre Pascal e os números é uma espécie de superfície espelhada; do outro lado vemos Wittgenstein e as palavras. O mesmo êxtase perante as “admiráveis propriedades” das coisas abstratas.
“ Nada vincula tanto o ser humano à linguagem quanto seu nome. ” Podemos abrir um bocado as palavras de Walter Benjamin, aplicar o princípio não só aos seres humanos. Faz todo o sentido, por exemplo, que a Holanda seja tratada por Países Baixos. — O bon Dieu! Les langues des hommes sont pleines de révélations.

INTERRUPÇÃO

(1901) O trabalho dos deuses nós o interrompemos, abruptos e inexperientes seres do momento. Nos palácios de Elêusis e Ftia, Deméter e Tétis empreendem boas obras em meio de enormes chamas e fumo denso. Mas sempre surge Metanira dos quartos reais, desgrenhada e aterrada, e sempre Peleu se assusta e intervém. Konstantinos Kaváfis 145 Poemas, tradução de Manuel Resende, edição FLOP. 

Papel e tinta

Artigos, crónicas, apontamentos, números, dados, estatísticas, análises das estatísticas, previsões, opiniões sobre as previsões, opiniões sobre as opiniões. E, no entanto, já quase não há tinta a pintar o papel. O que resta é a superfície brilhante e higiénica de um ecrã. Nada mais. O toque dos dedos no papel, o cheiro da tinta, punham-nos em contacto com a matéria do mundo, lembravam-nos que para cada facto existe um abismo de causas e efeitos, de fluxos e refluxos. É preciso sol, chuva, terra e tempo para criar papel. O ecrã é plano, não tem memória nem profundidade. Mas talvez seja a minha imaginação a querer exigir ao papel e à tinta respostas que não existem. Respostas que ninguém tem.

Estado de excepção

Mas há outro motivo para o tremendo pânico. Novamente tem a ver com a digitalização. A digitalização elimina a realidade, a realidade é experimentada graças à resistência que oferece, e que também pode ser dolorosa. A digitalização, toda a cultura do “like”, suprime a negatividade da resistência. E na época pós-fática das fake news e dos deepfakes surge uma apatia à realidade. Dessa forma, é um vírus real e não um vírus de computador o que causa uma comoção. A realidade, a resistência, volta a fazer-se notar no formato de um vírus inimigo. A violenta e exagerada reacção de pânico ao vírus explica-se em função dessa comoção pela realidade. A reacção de pânico dos mercados financeiros à epidemia é, além disso, a expressão daquele pânico que é já inerente a eles. As convulsões extremas na economia mundial fazem com que essa seja muito vulnerável. Apesar da curva constantemente crescente do índice das Bolsas, a arriscada política monetária dos bancos emissores gerou nos últimos anos um p

As admiráveis propriedades que os números têm

1942 O matemático (Pascal) que admira a beleza de um teorema na teoria dos números é como se admirasse um belo fenómeno natural. É maravilhoso, diz ele, as admiráveis propriedades que os números têm. É como se estivesse a admirar as regularidades numa espécie de cristal. * Poderia dizer-se: que leis maravilhosas imprimiu o Criador nos números! Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, tradução de Jorge Mendes, Edições 70, página 67.

Por mais que limpe o pó, o pó não desaparece. Acumula-se sobre os móveis, os livros, o computador. Avança pelo corredor, entra no quarto, instala-se na sala. Não dá tréguas. Se limpo agora, volta a aparecer daqui a pouco. Ainda mais notório, ainda mais abundante. É como se a casa se revoltasse contra a nossa presença. Como se nos quisesse ver pelas costas. Como se fôssemos o pó que a casa quer limpar.

Espelho

Ainda é possível pensar em certos livros ou filmes como meros exercícios da imaginação? Volto atrás. Tento lembrar-me da primeira vez que vi «O Cavalo de Turim». A tela do cinema era uma tela de cinema. Agora, percebo que era um espelho.

Bonfim, Nevogilde. China.

Só estamos quatro na agência (aproximadamente vinte e cinco metros quadrados para cada um); três trabalham em casa. Venho de carro, atravesso a cidade de uma ponta à outra em dez minutos. Há pouco movimento. Na rádio alguém fala da China e diz:  parece sempre domingo de manhã . Sinto-me como o Bill Murray no dia da marmota.

As Janelas

O que se pode ver à luz do Sol é sempre menos interessante do que o que se passa por trás dum vidro. Nesse buraco negro ou luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida. Baudelaire, O Spleen de Paris . Tradução de António Pinheiro Guimarães.

A bit too on-the-nose

LOS ANGELES, CALIFORNIA—At the pharmacy, a young man wearing a gray hoodie, cargo shorts, flip-flops, and an expensive-looking, black air-purifying mask leans on the crowd-control barrier, rubs his bare hands listlessly back and forth across it, then wipes his eyes. Then he puts his hands back on the barrier. The mask muddles his voice, and the pharmacist can’t understand what he’s saying. My screenwriter friends would flag this scene for being a bit too on-the-nose. (...) Sarah Manguso March 19, 2020

Corcunda

Passei o fim-de-semana à janela. Uma corcunda está a irromper, pouco a pouco, nas minhas costas. Em breve, serei outro. O meu nome mudará para Maria José . E tudo o que farei é escrever uma carta de amor ao serralheiro, cujo fantasma continua a passar todos os dias lá em baixo, na rua vazia.

Estado de emergência

Ontem consegui cortar o cabelo. Paguei dois cortes, por conta do futuro. Hoje de manhã, na rotunda do Freixo, tive de levantar a voz para informar o polícia distante que ia às compras ao Continente de Massarelos. Omiti a frase sobre sentar-me um bocado em frente ao rio a apanhar sol — acho que os polícias não estão familiarizados com as cadências de Ozu.