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Mensagens

Agora somos todos fragmentistas

Emil Cioran: Acho que a filosofia já não é mais possível senão como fragmento . Sob a forma de uma explosão. Agora já não é possível desatar a escrever capítulo após capítulo, sob a forma de um tratado. Nesse sentido, Nietzsche foi eminentemente libertador. Foi ele quem sabotou o estilo da filosofia académica, quem atentou contra a ideia de sistema. Ele foi libertador, porque depois dele podemos dizer qualquer coisa... Agora somos todos fragmentistas, mesmo quando escrevemos livros aparentemente coordenados. O que liga bem com o nosso estilo de civilização. Fernando Savater: Isso também está de acordo com a nossa probidade. Nietzsche dizia que na ambição sistemática, há uma falta de probidade... Emil Cioran: A propósito de probidade, deixe-me ainda dizer uma coisa. Quando alguém se lança num ensaio de quarenta páginas sobre o que quer que seja, parte de certas afirmações prévias e fica prisioneiro delas. Uma certa ideia de probidade obriga-o a respeitá-las até ao fim, a não

"Todo signo sozinho parece morto"

No sábado fui à Biblioteca entregar os livros . Deixei o Wittgenstein — perigoso, intocável — em cima do monte das devoluções. Vai entrar em quarentena. Por coincidência, "Ludwig Wittgenstein" e "Quarentena" têm o mesmo número de entradas no blogue (30). Les jeux sont faits .

Presente perpétuo

Existe desde 1996 uma «Fundação do longo agora» (The Long Now Foundation), cujos promotores são personalidades conhecidas da contra-cultura americana e do high-tech . O seu projecto-farol, que não passa ainda de um work in progress , é um relógio gigantesco concebido para durar dez mil anos. O ponteiro maior avançará uma vez por ano, o pequeno uma vez de cem em cem anos e o cuco cantará a cada milénio... Prevê-se instalá-lo no Texas, na propriedade de Jeff Bezos, o patrão da Amazon e um dos financiadores do projecto, e torná-la num local de peregrinação, onde cada um será convidado a meditar a longo prazo. Que uma tal iniciativa parta daqueles que são os principais arautos e beneficiários do presentismo tecnológico é também um sinal. Será que têm remorsos e procuram redimir-se construindo um santuário a Chronos, o mesmo deus que ajudaram a destituir, com vista a reanimar o seu culto? Ou para se assegurarem de que está bem morto? François Hartog.

Sonatina para uma camisa branca

O livro de recitações desta semana é muito divertido. Desde o início, mas principalmente as duas ultimas frases: (…) comparecer com as suas camisas, sempre muito chique, onde quer que há descamisados em perigo. Ele está sempre embarcado, mas só embarca em iates.

Carta de Mlle Rosimont

Esqueci-me de te falar de um homem bizarramente constituído, com quem fiz uma partida em casa da presidente. Tinha um só testículo. Alguma vez viste algum desta espécie? Quanto a mim, foi a primeira vez. Ele disse-me que aquilo o tinha impedido de ser padre. É extraordinário: obrigado ao celibato, os testículos são um mobiliário inútil. Na minha opinião, se os castrassem a todos o seu número diminuiria rapidamente. Adeus, minha querida. 30 de Agosto de 1782.
Recrudescimento de actividade de negócios financeiros e económicos: vou investir parte do complemento de estabilização (trezentos e cinquenta e um euros) em livros e vinho .

Escravo

Um dia de férias no meio de uma semana de trabalho. Tarde na esplanada a ler. E a permanente sensação - uma impressão estranha, hostil, obscura - de que estou em falta com alguém ou alguma coisa. O sentimento de um escravo.

Dispersos

Nos últimos dois meses, tenho estado a resgatar para publicação as traduções dispersas de um grande tradutor e poeta, falecido em Janeiro. O trabalho arrasta-se, cheio de obstáculos. Em muito pouco tempo, uma parte da sua obra afundou-se num abismo de silêncio e sombra. As coisas fecham-se a sete chaves contra os olhares indiscretos dos vivos. Tudo o que antes de Janeiro parecia claro e acessível, converteu-se rapidamente em nada mais do que indícios. Sinais vagos de poemas que existiram e desapareceram quase sem rasto. Como se também eles quisessem morrer.

Tabu

Não existe nada mais artificial do que as comparações rebuscadas que se costumam empregar para descrever uma jovem. A boca... uma cereja... Os seios, como botões de rosa... Oh, se tudo se pudesse resolver comprando no mercado um cesto de flores e frutos! E quem se apaixonaria se uma boca tivesse realmente o gosto da cereja madura? Quem se deixaria tentar por um beijo que fosse tão doce quanto um rebuçado? Caluda! Basta! Mistério, tabu... Witold Gombrowicz, Bakakai . Tradução de Rui Almeida Paiva.

Apenas as borboletas morrem assim?

Um gostava de passear de bicicleta, o outro a pé. Fora as deambulações, acho que nada liga Cioran a Walser: nem língua, nem cultura, nem itinerários. Nunca me passou pela cabeça aproximá-los. Foi por isso com verdadeiro espanto que descobri um texto de Cioran —  rapaz, romeno, arrebatado,  especialista no problema da morte   — intrinsecamente walseriano. Pelo menos foi assim que o traduzi: A BELEZA DAS CHAMAS — O fascínio das chamas subjuga de um jeito estranho, para além da harmonia, proporções e medidas. O seu ímpeto impalpável não simboliza a tragédia e a graça, o desespero e a ingenuidade, a tristeza e a volúpia? Não encontramos, na sua transparência devoradora e na sua imaterialidade ardente, a projecção e a leveza das grandes purificações e dos incêndios interiores? Gostaria de ser levado pela transcendência das chamas, sacudido pela sua respiração delicada e insinuante, flutuar sobre um mar de fogo, consumir-me numa morte de sonho. A beleza das chamas dá a ilusão de uma

Loop

Uns confinam, outros desconfinam. Os que desconfinam agora, confinarão mais tarde. Os que confinam hoje, desconfinarão amanhã. O vírus parece que vai e volta, mas na verdade não vai a lado nenhum. É como se estivéssemos a assistir em loop àquela cena de Ecce Bombo em que Michele Apicella, o personagem de Nanni Moretti, se despede várias vezes dos amigos, mas nunca chega a sair do lugar.

Os artistas como veraneantes

O escritor como operário

Se o meu amigo conhecesse os bastidores da literatura, saberia que o escritor é uma pessoa cujo ofício é escrever, como outros têm o ofício de construir casas. Nada mais. O que o distingue do fabricante de casas é que os livros não são tão úteis como as casas e, além disso... além disso, o fabricante de casas não é tão vaidoso como o escritor. Hoje em dia, o escritor considera-se o centro do mundo. Conta toda a espécie de patranhas. Engana a opinião pública, consciente ou inconscientemente. Não revê as suas opiniões. Acha que o que escreve é verdade só pelo facto de ter sido ele a escrever. É o centro do mundo. (...) Todos nós, que escrevemos e publicamos, fazêmo-lo para ganhar a vida. Nada mais. E para ganhar a vida não hesitamos por vezes em afirmar que o branco é preto e vice-versa. De resto, há momentos em que até nos permitimos o cinismo de nos rirmos e de nos acharmos génios... Roberto Arlt, Águas-fortes portenhas .

E o povo voltará a ser simples e frugal

Fazei cair por terra a santidade e rejeitai a prudência e deixarão de existir pequenos ladrões. Deitai fora as pedras preciosas e destruí as pérolas e deixarão de existir os grandes ladrões. Queimai os contratos e parti os carimbos e o povo voltará a ser simples e frugal. Baralhai as medidas e quebrai as balanças e as gentes não mais se disputarão. Aboli as instituições dos santos e dos reis e o povo tornar-se-á sensato. CHUANG CHOU Chuang Tse [séc. IV a. C.]

Fazer-se de morto

Há três dias que, como certos personagens de Roberto Arlt , me faço de morto. Talvez mais. Não, não é «talvez mais»: faço-me fervorosamente de morto há muitos dias. Não funciona. Sou tão inábil na nobre arte de fingir-se morto que não mereço sequer uma nota marginal entre os personagens secundários de Roberto Arlt.