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Mensagens

O espelho

Um homem medonho entra e olha-se ao espelho. «Porque é que o senhor se olha ao espelho já que só com desprazer se pode lá ver?» O homem medonho responde-me: «Senhor, segundo os imortais princípios de 89, todos os homens são iguais em direitos, logo tenho o direito de me mirar. Com prazer ou desprazer, isso só à minha consciência diz respeito.» Em nome do bom senso, eu estava sem dúvida certo. Mas do ponto de vista da lei, ele não deixava de ter razão. Charles Baudelaire, Embriagai-vos | Antologia de poemas em prosa de autores franceses. Tradução de Regina Guimarães. Em co-edição (FLOP) até 11 de Outubro. Para ser co-editor é só seguir o link.

Quase trinta anos

Legendary Armenian filmmaker Artavazd Peleshian is set to release La Nature (or Nature ), his first film in almost three decades at an exhibition in Paris. Premiered by the Fondation Cartier, La Nature brings together amateur shots of nature, such as volcanic eruptions, earthquakes, tsunamis, and grandiose landscapes from the internet, juxtaposing the overpowering force of nature with human ambition. Texto completo aqui.

Aforismos há muitos

Agudeza , de acordo com Baltasar Gracián, é uma boa definição; ampla, com óptimas vistas. Brian Dillon aproveita o lance e escreve:  o aforismo é antes de mais algo afiado ou aguçado, aplicado com violência — mas esta violência não pode ser definitiva, tem de ser repetida uma e outra vez . Entretanto lembrei-me d’ O Vespão de Peruca e ocorreu-me ferroada . De acordo com o dicionário: picada com ferrão, mas também censura picante ou sátira. Tem qualquer coisa de wit —  podia ser usada em exclusivo pelos ingleses, como um chapéu de Ascot. Ainda tenho outra proposta, mas esta é demasiado jocosa, quase uma greguería. Apanhei-a por causa do que Cioran escreveu sobre a importância da comida em França. Aqui fica em jeito de homenagem ao filósofo, à língua e a outras delicadezas francesas:  amuse-bouche ou, melhor ainda, amuse-gueule . Um aperitivo oferecido que se come de uma só dentada. (Claro que transformar um entretém de boca numa tomada de posição filosófica não é para qualquer um

Fumo

Leio no jornal um texto sobre movimentos sociais no Porto que reivindicam o direito à habitação. A socióloga Inês Barbosa, que estuda o assunto, diz que são, quase sempre, fenómenos pontuais e efémeros. Na verdade, não devem ser considerados sequer «movimentos sociais» porque «não são consistentes e têm tendência a esfumarem-se com rapidez.» Tal como aparecem, por vezes até com algum impacto público, desaparecem no momento seguinte. É como se tudo à nossa volta seguisse hoje uma espécie de padrão facebookiano . Um protesto pelo direito à habitação tem o mesmo valor de uma publicação nas redes sociais: de manhã aparece no mural e gera «reacções», à tarde não.
— Pela última vez, Deus também não existe. — Então, quem anda a gozar assim com as pessoas, Ivan? — O Diabo, pelos vistos — esboçou um sorriso Ivan Fiódorovitch. — E o Diabo existe? — Não, também não existe. Os Irmãos Karamázov, primeira parte, livro 3 “Os Voluptuosos”, capítulo 8 “Enquanto se toma conhaque”. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. Editorial Presença. Outubro de 2002.

Por causa do sol

O senhor mandou queimar uma pradaria... pintou casas de cores totalmente diferentes... e fala-se de um bosque que o senhor pintou. Antonioni: Sim, é verdade. Mas eu não pude rodar a cena por causa do sol. Havia um bosque que me interessava, que ficava ao lado de uma fábrica muito grande, muito importante, com quatro mil operários... e devia começar o filme por uma greve... e essa greve deveria acontecer perto do bosque. O bosque era verde, claro... mas sentia que esse verde... não era adequado ao momento. Então, quis pintar o bosque de branco, aliás, de cinza. O branco sobre o verde dava uma cor cinza. Fizemos isso. Pintamos a noite inteira com uma grande bomba... que soltava um tipo de tinta, mas era quase uma fumaça. Mas no dia seguinte, ao sol, não pude filmar... porque ficamos contra o sol e o bosque parecia preto. Michelangelo Antonioni, a propósito de O Deserto Vermelho .

O tipo de homem não só inútil e depravado, mas ao mesmo tempo inapto.

Apesar do título e do narrador explicar, ainda antes de começar a acção, que o herói do livro é Aleksei Fiódorovitch Karamázov, as descrições e as entradas em cenas de Fiódor Pávlovitch (pai dos três irmãos Karamázov) são prodigiosas de bufonaria. Só para dar três exemplos. Logo na primeira página do primeiro capítulo, um retrato e conceito muito bem definidos (nada a mais, nada em falta, excelente ritmo): Agora digo apenas que este “proprietário rural” (como lhe chamavam aqui, embora não tenha vivido na sua propriedade durante quase toda a vida) era um tipo estranho, desses que no entanto se encontram com bastante frequência, ou seja, o tipo de homem não só inútil e depravado, mas ao mesmo tempo inapto — desses inaptos que, aliás, sabem tratar muitíssimo bem dos seus interesses mas, pelos vistos, só disso. (Página 17) Mais à frente, esta conversa de Fiódor Pávlovitch com o filho Aleksei é de uma perfeição extrema e perturbadora; por preguiça transcrevo apenas um pedaço: (...)

Diário

Entre 26 de Agosto de 1911 e 26 de Setembro do mesmo ano, Kafka não regista qualquer entrada no seu diário. Há períodos ainda mais longos de «silêncio»: entre 19 de Setembro de 1917 e 6 de Julho de 1919, por exemplo. O que terá acontecido durante esses longos meses em branco? Quando não escrevia, quem era Kafka? Interessa saber?

Corrida de obstáculos

Para ocupar cinquenta por cento do meu tempo de trabalho — agora e possivelmente até ao fim do ano — livre, pensei traduzir as Lágrimas e Santos do Cioran de uma ponta à outra. Decidi continuar a ler Dostoiévski para aquecimento e preparação, como se fosse uma prova de atletismo. Os Irmãos Karamázov estão a revelar-se uma verdadeira musa, quero dizer, tusa, não, púsia, púsia — assim é que é.

A mão de Alexandre

A aproximação da morte faz com que as grandezas terrenas nos inspirem comiseração – até o ambicioso ela desengana. Dizem que, sentindo-se morrer, Alexandre, que em vida a si mesmo oferecia hecatombes de povos inteiros, que abalava com hostes de soldados para dar caça aos ceptros e às coroas, ordenou que o sepultassem com a mão fora da cova, a fim de que cada pessoa ao passar pudesse, ao ver aquela mão vazia, calcular o que lhe restava das suas conquistas e o que se leva para o túmulo dos tesouros deste mundo. Lição perdida! Nadir e Gengis Khan não passaram por lá. Um único conquistador, aquele que troça de todos os outros, apenas o Tempo pôde vê-la e não a respeitou. Ao ceifar Babel e outras ervas daninhas do género, pisou a mão de Alexandre. Jules Lefèvre-Deumier, Embriagai-vos | Antologia de poemas em prosa de autores franceses . Tradução de Regina Guimarães. Em co-edição até 11 de Outubro. Para ser co-editor é só seguir o link.

Sinfonia de uma pequena cidade

Obras na avenida Fernão Magalhães (sul). Obras no prédio ao lado (traseiras, norte). Obras no apartamento em frente (a toda a volta). No segundo andar, o médico toca piano (escadas).
Como nos vícios, queremos sempre algo mais forte. Depois d’ O Idiota, avanço para Os Irmãos Karamázov. Sinto um formigueiro na cabeça.

A minha biblioteca é mais divertida do que a tua, Alberto.

Aproveitei o fim de semana de chuva e nuvens para limpar os livros. Tirando algumas colecções, autores ou temas que têm direito a uma prateleira inteira, arrumei os restantes por ordem alfabética. Às vezes tive de fazer pequenas falcatruas. Por exemplo: empurrei Guillaume Apollinaire mais para a frente para o Rui Manuel Amaral ficar juntinho ao Roberto  Arlt . Robert Walser é o escritor mais poliglota da minha biblioteca. Tenho livros em português, francês, inglês e alemão — ocupam trinta e cinco centímetros. Descobri três livros repetidos.

Vou viver no museu tal como costumo viver em casa

Eu sou artista. Sou mulher. Sou esposa. Sou mãe (ordem aleatória). Passo demasiado tempo a lavar, limpar, cozinhar, renovar, apoiar, preservar, etc. Além disso (e até agora estes dois mundos estavam separados), "faço" Arte. Agora vou só fazer estas actividades quotidianas de manutenção, tornando-as conscientes, expondo-as como Arte. Eu vou viver no museu tal como costumo viver em casa, com o meu marido e o meu bebé (exacto, mas se não me quiserem no museu à noite, regresso todos os dias) durante o tempo todo da exposição e farei tudo isto como actividades de arte pública: vou varrer e encerar o chão,  limpar o pó a tudo, lavar as paredes (ou seja, "pinturas de chão, trabalhos com pó, esculturas de sabão e pinturas de parede"), cozinhar, convidar pessoas para comer, limpar, arrumar, mudar as lâmpadas. É possível que faça aglomerações e disposições com todo o material excedente funcional. A área da exposição poderá parecer "vazia" de arte, mas será mantida p

A corcunda

As pessoas dizem “atirar para trás das costas” para esquecer, mas não é bem assim. E se a carga fica presa nas nossas costas? Isso não implica que vamos andar com aquele peso para sempre? Uma corcunda patafísica?

Fumo

Acendo um cigarro para invocar as palavras. Nada. Apenas fumo. Pequenas nuvens pelo ar. Mas há qualquer coisa no fumo do cigarro. Um mistério qualquer. Asa, pluma, um silêncio.  O que será?

Pois bem, seja!

O homem e eu, enclausurados dentro dos limites da nossa inteligência como amiúde um lago dentro de uma cintura de ilhas de coral, em lugar de unirmos as nossas forças respectivas para nos defendermos contra o acaso e o infortúnio, afastamo-nos, estremecendo de ódio, optando por duas estradas opostas, como se nos tivéssemos ferido reciprocamente com a ponta de uma adaga! Dir-se-ia que cada um compreende o desprezo que inspira ao outro: empurrados pelo móbil de uma dignidade relativa, esforçamo-nos por não induzir em erro o nosso adversário – cada um fica do seu lado e não ignora que a paz proclamada seria impossível de manter. Pois bem, seja!  Isidore Ducasse, Cantos de Maldoror: Canto IV, Estrofe I .  Tradução de Regina Guimarães. Em breve, numa edição FLOP .

Se o banco fosse verde

Nove e pouco da manhã. Estou sentada no jardim do Calém a apanhar sol, a fazer tempo. Ele vem ter comigo e diz: — Não tenha medo de mim, eu não sou um assassino. Depois acrescenta muitas coisas, conta uma história complicada quase sem sentido, mostra-me as mãos abertas, mas já não presto atenção. Aquela frase podia ser d’ O Idiota. Se o banco fosse verde.