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Mensagens

Cena 12

Dia. Exterior. Som directo. Sentada entre ruínas, de perfil para a câmara, uma velha, da qual se vê apenas a cabeça. Ao fundo, dominando quase toda a superfície do enquadramento, a abertura rectangular do que devia ter sido uma janela dando para uma paisagem de campo suburbano com um monte que se recorta contra o céu. VELHA: Ai o meu filho! Travelling óptico, muito lento, em direcção à janela. A velha fica fora de campo. VELHA (Off): Neste país, os velhos morrem como cães. O movimento óptico já deixou para trás a janela e, agora, é apenas visível a paisagem que aqui se indicou, na convicção de que não se pode indicar tudo. Final do movimento óptico. João César Monteiro, Fragmentos de Um Filme-Esmola / A Sagrada Família (1972).

Observações avulsas sobre o bonfim #25

Em frente ao cemitério do Prado do Repouso, o “Mercado do Largo” tem uma montra só para vinhos. Estão agrupados nas prateleiras por ordem hierárquica: os mais caros em cima e os mais baratos junto ao chão. Pela prática vertical (para os católicos) ou pelo efeito do álcool (horizontal, é igual para todos), são mais eficazes do que velas e flores se quisermos falar com os mortos.  Levada pelo nome, ando a descobrir os vinhos de altitude ( acidez , noites frias — estes vinhos parecem um romance).

Nota prévia

Nas páginas que se seguem conto a história do meu amigo, camarada e companheiro de ideias, Franz Tunda. Recorri em parte aos seus apontamentos e em parte às suas descrições. Nada inventei, nada é composição minha. Por isso, não pretendi fazer «poesia». Observei e isso é o mais importante. Paris, Março de 1927. Joseph Roth, Fuga sem fim . Tradução de José Sousa Monteiro.
No programa sobre a Graciosa, alguém disse: “Engraçou-se com os burros”.  Só nos Açores, e sobretudo na Graciosa, é que se pratica ainda este português amável.  Parece que lá na ilha, todos lêem Pessanha ao pequeno almoço. 

Máquina de escrever

Joe Gillis sai de casa em direcção à garagem. Traz consigo a máquina de escrever. Norma Desmond dispara sobre ele dois tiros pelas costas. Com o impacto, Gillis deixa cair a máquina de escrever. Volta-se e olha para Norma. Debruça-se para apanhar a máquina do chão. É só o esboço de um gesto. O último gesto. A máquina de escrever é o fio que o liga à vida. Ou melhor, o fio que o liga a todas as coisas passadas e presentes. O gesto fica a meio. Num instante, Norma dispara um terceiro tiro, que o atinge na barriga. Gillis é projectado para trás e cai na piscina. Não voltamos a ver a máquina de escrever.

Observações avulsas sobre o bonfim #24

No quarteirão da Casa das Artes do Bonfim há um açougue (árabe as-soq , mercado, feira). Para além da denominação, tem cartazes com os cortes das carnes em brasileiro  (fraldinha, maminha, filé, etc.). Considero-o um ponto de leitura obrigatória nas minhas idas e vindas.  Isto não vem na Monocle.

9 abril 1969

O pensamento é indiscrição, usurpação .  Pensar é não deixar as coisas no sítio — é um trabalho de deslocação.  O pensamento é a forma mais subtil da agressividade. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Romper

Romper para sempre com tudo o que é académico, professoral, pedante, instrutivo, “objectivo”, “profundo”, “significativo”, “conhecido”, “conceituado", está na berra, etc., etc., etc.. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Páginas em branco

Um pouco por toda a cidade, multiplicam-se os suportes publicitários vazios. Altos tronos sem os seus tristes soberanos. Despidos da tralha publicitária, sem o brilho e a glória das novidades e promoções, lembram telas de cinema ou enormes páginas em branco. Agora, sim, vale a pena olhar para eles.

Casa em chamas

Leio nos jornais que passou um ano desde o aparecimento dos primeiros infectados pelo coronavírus em Portugal. Entretanto, nos últimos dias, comentadores e analistas, de todas as classes e géneros, têm exigido do Governo um «plano de desconfinamento», para que «não se repitam os erros do passado».  Ocorre-me o final de O Sacrifício , de Tarkovski: a famosa cena da casa em chamas. Há um documentário curioso sobre a rodagem do filme chamado Sätta Ljus , de Kerstin Eriksdotter. Nesse documentário, acompanhamos a preparação e as filmagens de várias cenas, e dessa última em particular. Tarkovski e a equipa, que incluía um corpo de bombeiros e outros especialistas em incêndios, planearam tudo até ao mais ínfimo pormenor, mas houve um problema com a câmara. As imagens do rosto de Tarkovski, dominado pelo desespero, são impressionantes. Para ele, o filme só era concebível com aquela cena. O investimento era avultado. Prepararam tudo pela segunda vez. A casa ergueu-se de novo, no mesmo local. R

Passou-se uma coisa muito curiosa que aproveito para contar aqui

Quando o [José] Craveirinha foi julgado em tribunal militar, tribunal de excepção, acusado de antiportuguesismo — porque ele era suspeito de querer a independência [de Moçambique] —, eu fui lá como testemunha abonatória. Era amigo do Craveirinha há muitos anos e, perante o juiz militar, que era um indivíduo convicta e seriamente aderente do Estado Novo (não era um oportunista, acreditava mesmo naquilo), eu disse esta coisa muito simples: “Oiça, não convém confundir o desejo de uma alteração político-administrativa num território com antiportuguesismo, porque, se vocês repararem, há pouca gente que goste tanto da língua portuguesa quase sensualmente como o Craveirinha. Um indivíduo destes não pode ser antiportuguês. Pode ser contra o regime que nos governa, mas isso não tem nada que ver com Portugal.” O juiz militar ouviu com muita atenção o que eu lhe disse — antes de dar a sentença, uma pessoa minha amiga viu-o na igreja com ar de grande angústia — e depois foi um dos que votou pela a

Este mundo

Devia haver um livro de Edward T. Hall sobre insultos e imprecações, do género dos que ele dedicou ao tempo e ao espaço. Na falta de fontes eruditas, restam as palavras vulgares (que até assentam melhor aos textos de Cioran, não me posso esquecer disso nunca).  “ Ce monde qui ne vaut pas un crachat ” traduz-se quase automaticamente por “este mundo que não vale um peido”. (Pensei na rã, claro, mas eliminei-a logo — não me permito golpes desses.) Acho que Cioran era capaz de gostar desta troca escatológica; peido é mais angelical que escarro .

Decifrar

Atribuir a cada edifício da cidade uma letra do alfabeto: «a» para casas térreas; «b» para casas térreas com logradouro; «c» para casas térreas com telhado de uma água; «d» para casas térreas com telhado de duas águas; «e» para prédios de dois andares; e assim sucessivamente. Decifrar os textos secretos do grande arquitecto.

Fotografia

Saio de manhã cedo para um curto passeio antes do trabalho. Percorro a Rua de António Cândido, em direcção a Faria Guimarães. Mais ou menos a meio, ergue-se a maior magnólia do bairro. Faz parte de um jardim privado, mas a árvore já saltou o muro e parece querer lançar-se pela rua a qualquer momento. Tiro uma fotografia antes que escape.

Paisagens despojadas da Escócia

Armand Robin, este estranho tradutor que conhecia toda a poesia, um dia em que lhe falei de Chuang-Tzu, disse-me que o punha acima de todos os poetas e de todos os pensadores, e que só o podia comparar com algumas paisagens despojadas da Escócia. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Ah, o Japão!

Este japonês que diz que é preciso compreender o « ah !» das coisas. Cocktail em casa de uma jovem japonesa. Temos de aprender o sorriso nipónico . O resto é acessório.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.