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Nervos | Ilusão | Sonhei que fodia contigo

Rua Mártires da Liberdade, Porto. 

Cansaço

Por estes dias, o comentário político nos jornais está dominado por duas palavras: «cansaço» e «desgaste». «O cansaço do governo» e «o desgaste do governo». Alguns comentadores mais impacientes acrescentam ao cansaço e ao desgaste, «uma certa arrogância do governo». E insistem nisto até à náusea, na esperança de que o comentário, mil vezes repetido, se transforme em verdade. O cansaço e o desgaste, no entanto, são obviamente dos comentadores. Falta novidade, falta drama, falta sangue. Os comentadores estão cansados de esperar que o governo se desfaça por dentro e impluda de vez. Como sempre, não lhes ocorre melhor ideia.

(como nas ilhas)

Verão tardio é o verão já fora da estação; atrasado; serôdio (palavra formidável para usar nos debates parlamentares). Mas se seguirmos a tendência deste outubro suave, acho que podemos arrastar a expressão para outro significado: o verão que só vem à tarde, como no filme do Rohmer; uma ocupação meteorológica em part-time (como nas ilhas).

Nesse tempo era sempre uma festa

Só descobri hoje que saiu uma nova tradução d' O Belo Verão (a capa de João da Câmara Leme para a Portugália é mais bonita, mas esta edição resgata o adjectivo). Pode ser mais um sinal do meu crescente alheamento do mundo. Por outro lado, ler Pavese neste verão tardio e sem futuro é um gesto intimamente  pavesiano .
 

Abertura

Um tipo a enterrar uma mala com dinheiro roubado, no meio de uma enorme clareira coberta de neve.  Imagino um filme perfeito, feito a partir de excertos de outros filmes. Esta sequência, de The Criminal , de Joseph Losey, seria o ponto de partida.

No ponto

Ontem domingo (27 de outubro?) uma trintena de quilómetros a pé. Sete horas de caminhada para lá de Étampes. Momento ideal de outono. Gosto tanto do amarelo como detesto o verde.  Como disse a S.: o outono está no ponto . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Material circulante

Acho que arranjei uma solução para traduzir Mauvais Demiurge . Na verdade não é bem uma solução no sentido de desfecho, mas uma equação dinâmica: traduzir sempre de modo diferente. Transformar o adjectivo mauvais  numa palavra camaleão; a cada ocorrência (e são tantas), convertê-lo em variadas palavras que não se conseguem agarrar — tão esquivas como o  " trabalhador para o povo " .

Novos Rimbaud

Qualquer ignóbil detentor de farta conta bancária, qualquer filho de oficial, qualquer rebento de burocrata, qualquer um desses felizes parvalhões a quem se oferece uma mota pelo Natal, qualquer aborto educado em papel de seda, todos têm como coisa infalível serem novos Rimbaud e que o eu deles é também um outro. Tudo quanto passa a vida à espera da herança fala em sumir-se um dia. (...) O que estudo para já neste fenómeno é a grande comodidade antipoética do rimbaudismo contemporâneo. Porque a antipoesia deixou de ser uma quimera dialéctica. Materializou-se, em tempo desportivo tornou-se sistema, dispõe até de fundamentos metafísicos em caso de necessidade. Louis Aragon, Tratado do estilo . Tradução de Júlio Henriques.

Bestiário

Dois dias após as eleições, os candidatos continuam a sorrir nos outdoors e cartazes. Mas já não é bem um sorriso. É qualquer coisa impossível de definir. No Porto, nenhum candidato foi um verdadeiro vencedor e nenhum saiu propriamente derrotado. Parecem giocondas, nem felizes, nem tristes. Centenas de giocondas espalhadas pelas ruas e esquinas da cidade. Um bestiário branco e monótono.

Um trabalho de vida

Por que é que o velho marinheiro, da balada de Coleridge, mata o albatroz? Porquê? Não se sabe, responde Alberto Pimenta . Talvez por diversão, por tédio, porque estava aborrecido, porque não tinha nada melhor para fazer. Não se sabe. «Estará aqui» - pergunta Alberto Pimenta - «não só o fundo de todo este poema, como até o próprio caminho que leva à poesia? É talvez uma compulsão dessas que habita e sempre habitou o poeta.» O certo é que a bala que atravessa o corpo do inocente albatroz também condena a tripulação à morte. A natureza vinga-se. O marinheiro é condenado à morte-em-vida e à eterna compulsão de narrar a história, uma e outra vez, que é o mesmo que a reviver continuamente. Alberto Pimenta propõe uma hipótese: «Esta compulsão de quase permanentemente refazer, narrando, o próprio crime, ou falha, ou falta, ou desvio inicial, é provavelmente o arranque que leva a qualquer narração poética, que se torna assim um trabalho de vida. (...) Quer dizer que poesia que claramente o é,

El escritor catalán Félix de Azúa retratado en 1970

— Esquálido e com ar de refugiado.  Fui procurar o jovem Félix de Azúa dos anos setenta e encontrei duas fotografias num banco de imagens ( esta e esta , mas sem perceber a que se destinavam). Não tem a gabardine acolchoada verde-garrafa (quem será o Víctor a quem ele a deu? Será Víctor Gómez Pin?) nem as botas forradas a pelo.  Descalço, de calções esfarrapados e t-shirt de feira (por enquanto vou ignorar o cinto e o relógio), parece que está dentro de um filme de Pasolini: adorável.

Um refugiado em casa

Nada do que li de Cioran me esclareceu tanto sobre a complexa e delicada trama do seu espírito como aquela visita, há mais de 20 anos, na companhia de Fernando Savater. Fomos vê-lo às suas águas-furtadas no Bairro Latino — uma chambre de bonne de um ascetismo semelhante ao de Dreyer, pintada de branco até ao chão e com uma salamandra de ferro no meio, certa tarde de fevereiro ou março, já não me lembro, com um frio de rachar. A salamandra, que parecia uma divindade primitiva e malévola naquele refúgio evidentemente santo, estava apagada. Nessa altura, Savater andava a traduzir Cioran para aquela editora Taurus dirigida por alguém que ainda não tinha conseguido enobrecer o sangue, e ninguém conhecia o romeno. Recordo que naqueles anos não muito distantes de 70 houve uma greve de lixeiros em Paris e a cidade estava coberta de lixo. As ratazanas roçavam as pernas dos transeuntes e um fumo excrementício emanava das montanhas de matéria decomposta. Todos os dias, enquanto durou a greve, Be

Oráculo

Quando Creso consultou Delfos antes de dar o passo mais grave na sua longa vida de soberano - a guerra contra Ciro da Pérsia -, a resposta da Pítia foi perfeitamente dúbia: «Destruirás um grande império.» Creso pensou que o grande império era o de Ciro, mas o oráculo referia-se ao seu. Roberto Calasso, As núpcias de Cadmo e Harmonia . Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.

Não demasiado

Quando chegou a Micenas, na companhia de Menelau, e encontrou sua irmã Clitemnestra, que acabara de ser degolada por seu filho, Orestes, Helena em sinal de luto cortou as pontas dos cabelos, mas não demasiado, para não se desfear. Roberto Calasso, As núpcias de Cadmo e Harmonia . Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.