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Mensagens

Linhas vermelhas

Os primeiros sintomas surgiram na quinta-feira. Dores nos músculos e um mal-estar geral. Sexta-feira o teste deu positivo. Duas linhas vermelhas paralelas no ecrã do teste de antigénio. E assim se vão acumulando as minhas linhas vermelhas. Umas voluntárias, outras nem por isso. O tempo avança, o cerco aperta.

Um animal estranho

Caminhava eu por uma avenida ladeada de eucaliptos quando uma vaca saiu de trás de uma árvore. Parei e olhámo-nos nos olhos. A sua vacalidade chocou com a minha humanidade a tal ponto - o momento em que cruzámos o olhar foi tão tenso - que perdi a confiança em mim enquanto homem , isto é, enquanto espécie humana. Experimentava pela primeira vez uma estranha sensação - a vergonha de um homem face a um animal. Deixei que ela olhasse para mim e me visse - isto tornou-nos semelhantes - em resultado também me tornei um animal - mas um animal estranho e, diria eu, até mesmo proibido. Continuei o meu caminho, retomando o meu passeio interrompido, mas senti-me desconfortável... na natureza, que me cercava por todos os lados, como se estivesse... a observar-me. Witold Gombrowicz, Diário I . Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.

Escrita

Um plano de La Belle Journée , de Ginette Lavigne: do outro lado de um vidro meio fosco, vêem-se umas mãos a matar e a esfolar um coelho; em off , ouve-se o escritor Christian Prigent explicar o seu método de escrita. O coelho debate-se durante algum tempo. É um bicho pequeno e muito branco, como uma folha limpa.

Manter um diário

Manter um diário, que prova de impotência para coordenar os pensamentos! É próprio de um espírito descontínuo, despedaçado nas suas raízes, profundamente cúmplice e vítima das flutuações do tempo, do seu tempo. Inapto para meditar, medita- se ... É filosofia rebaixada a um calendário íntimo.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

A mulher mais inteligente de Portugal

Fomos ver o filme de Samuel Barbosa sobre Paulo Rocha, A Távola de Rocha . A certa altura, Paulo Rocha refere-se a Regina Guimarães como «a mulher mais inteligente de Portugal». No caminho para casa, ela fez-me notar que Rocha diz «a mulher» e não «a pessoa».  O meu surdo astigmatismo está a agravar-se.

O povo

Tenho andado a pensar no que a deputada do PSD disse na noite das eleições: o que falhou foi o povo português .  Há uma classe social que tem dificuldade em se expressar (isso implica que também tem dificuldade em pensar — adiante), acho que o raciocínio completo subjacente à frase de Isabel Meireles é: o que falhou foi o povo português não ter feito  o que nós lhe dissemos que era o melhor para ele .  O que falhou, o que falhou  tremendamente  foi ele (ah, o povo português transformado em ele por oposição ao eterno poderoso  eles , a medir forças pronominais) pensar e agir pela sua própria cabeça — que pode muito bem ser o princípio de uma definição escorreita de democracia.  A frase ganha ainda outras ressonâncias contrárias, pois não só o povo não falhou como não faltou . Quando menos se espera, mesmo não seguindo os nossos desejos, aí está ele: o povo.

I can't afford a carriage

Os simulacros construídos para estas eleições foram muito sofisticados. Conseguiram lançar tantas dúvidas a António Costa que o puseram a saltitar daqui para acolá. E convenceram Rui Rio (e a sua equipa tacanha e bajuladora) da inevitabilidade da vitória. O único problema é que um simulacro é uma visão sem realidade . O discurso final de Rui Rio faz lembrar o HAL 9000 a cantar Daisy Bell .

Licenciado em Direito e Ciências Históricas e Filosóficas

 

Pão de mistura

No café moderno da Baixa, atafulhado de plástico e pechisbeque, a empregada tripeira (o acento é cerradíssimo) explica a um casal de turistas franceses vestidos à moda, que aquele pão é de mistura. «— Pão de mistura. Aqui chamamos “parolo”. — Párrólô? —Isso, parolo!»

Animais domésticos

Um verso de Paul Éluard: «As estradas que ela arrasta atrás de si são os seus animais domésticos...» Eu, que nunca tive um cão ou gato, gosto de imaginar as estradas como animais domésticos. Levar as estradas a passear. Tirar-lhes a trela e deixá-las correr pelo jardim e pela praia. Trazê-las para casa. Dar-lhes biscoitos. E um dia, talvez, acordar com uma ninhada de estradas entre o armário da sala e a parede. Quem sabe?

Ângulo apertado

Sonhei que alguém me pedia um conselho, já não me lembro bem do que se tratava, respondi que devia procurar as cores mais deslumbrantes para além da escuridão — qualquer coisa desse género. Só de manhã é que percebi que a minha resposta era igual às mãos vazias do pároco de Ambricourt.

Compreendes?

Estou a contar carneiros na montra da Académica e há dois tipos a beber cerveja à porta da Mirita. Apanho a conversa a meio. Um tipo conta ao outro que foi falar com um terceiro, a propósito de qualquer assunto cujo teor não chego a perceber. «— E o que lhe disseste? — Disse assim: “Olá, boa tarde, vai para a puta que te pariu.” —... — Isto para ser educado, compreendes? — Compreendo.»

O Diabo, provavelmente.

Laurence Tâcu: Acredita na existência do diabo?  Emil Cioran: O diabo é o símbolo de qualquer coisa. O diabo não é uma invenção habitual. Existe sem existir. Acredito que o diabo é o mestre do mundo . É tão real como Deus. O mesmo tipo de realidade. O diabo é ao mesmo tempo ficção e realidade . Acredito que a história universal, a história do homem, é inimaginável sem o pensamento diabólico, sem um desígnio demoníaco. Na história, ele aparece o tempo todo. O diabo é o símbolo de qualquer coisa. Mas uma vez que o mal é o motor da história, o diabo tem, necessariamente, uma existência implícita. O que se chama, o que os crentes chamam de diabo é muito real, não na sua forma ingénua, evidentemente… mas o diabo é o grande agente do devir da história, e a história universal sem a ideia do diabo é inconcebível . Para mim, é uma convicção profunda. É o mal que é o motor da história. Pode-se conceber isso sem ter necessidade de uma fé negativa. É um princípio, o mal, filosoficamente falando,

Barulho

Manhã de domingo. Sol, um pouco de vento e colunas de som aos gritos na esplanada. Tudo à nossa volta desaba sob o barulho. O barulho remexe em tudo. Este horror ao silêncio é uma coisa difícil de suportar. Não há café, esplanada, restaurante, tasca, sala de espera, estação de metro, lugar público, onde não sejamos esfolados por «música» ou relatos televisivos de jogos de futebol. Que maneira tão triste de evitar a solidão e tornar a morte mais fácil.

A nossa enxada e a nossa pá

Muitas das coisas que Cioran escreveu sobre o misticismo são úteis para perceber — ou tentar perceber — o Partido Comunista Português. Claro que qualquer militante praticante desafiar-me-ia já para uma discussão materialista sobre o assunto. Eu própria, se tivesse cartão, era capaz de o fazer. Horas e horas a esgrimir frases construídas com régua e esquadro.  Dito isto, só posso ser representada por um partido obsoleto. Li demasiado, o meu sonho é fazer ainda a revolução no passado.  A nossa enxada e a nossa pá  Nós usamos pra cavar  Cavando a nossa mina  Noite e dia sem parar

Sienkiewicz/Gógol

Há uns tempos, li com imenso prazer a novela  O Senhor Secretário , de Henryk Sienkiewicz. Na altura, fiquei com a impressão de estar a ler um Gógol meio desfocado. Não sabendo explicar melhor, desisti de tentar desenvolver a ideia. Agora, nos diários , Gombrowicz parece confirmar a minha impressão: E aqui - um paradoxo: este escritor conservador é neste sentido um precursor da actualidade revolucionária, este escritor «crente» está inconscientemente próximo da filosofia que refuta os valores absolutos e vive a dialéctica dos valores relativos resultantes das necessidades, nas quais o homem se torna a medida do valor. (...) Seria impossível um Sienkiewicz ateu, um Sienkiewicz bolchevique? Pelo contrário, é possível na medida em que, se algum dia a modernidade vermelha polaca publicar o seu grande romancista, será justamente Sienkiewicz à rebours . Todavia, ele não se via a si mesmo desta maneira. Disto não se apercebeu. E se se tivesse apercebido, teria acabado consigo mesmo na hora, e

Irmão Gombrowicz

8h30. Meia hora antes de começar a trabalhar - dantes dizia-se «pegar ao trabalho» -, abro o diário de Gombrowicz e leio umas linhas. Página 250, mais ou menos a meio do livro. As mesmas queixas, a mesma cantilena triste, como uma litania ecoando pelos séculos dos séculos, sem princípio, sem fim: «Segunda-feira. (...) Não vejo nada diante de mim… nenhuma esperança. (...) Depois de tantos anos de tensão e trabalho duro, quem sou eu afinal? Um escriturário massacrado por sete horas de trabalho, estrangulado em todos os esforços da escrita. (...) Tudo sofre porque, diariamente e durante sete horas, cometo um homicídio no meu próprio tempo. (...) De quem é a culpa? Dos tempos? Das pessoas? Mas quantas delas foram mais bem esmagadas?» 9h00. É o meu turno.
Começo a ler “Diário de um Zé-Ninguém” no dia em que arranca a campanha eleitoral e esse acaso estabelece uma relação política inesperada entre as duas acções: talvez este Zé-Ninguém seja o tipo indeciso que vota ao deus-dará? Talvez seja este homem palerma e cómico e triste que determina, sem disso se aperceber, o nosso futuro colectivo? Estamos tramados — e condenados a uma farsa infinita.