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Mensagens

Sim, também em latas

Pois claro, compro muito bem, compro tudo, mas isso é por causa desta estúpida vida. Não há mais nada que fazer. Actualize-se, leia jornais modernos, conviva com firmas avançadas, arranje uma moral comercial, bem comercial. Compre artistas, não compre arte. Compre mulheres, não se apaixone. Compra-se tudo, elas, eles, jardins, quintas, flores, frutos... Sim, também em latas. Tudo se vende. Nós próprios... Salette Tavares, O Kágado .

Ervilha debaixo do colchão

Também podia abrir um Gabinete de Investigações Literárias  — na verdade não me faltam ideias para negócios sem prosperidade. Mal comecei a ler Geada , de Thomas Bernhard, fiquei logo com vontade de descobrir qual é o livro de Henry James que o jovem estagiário de medicina levou para Weng. Em vez do livro de Koltz sobre as doenças do cérebro, mais apropriado às circunstâncias da sua missão, ele preferiu Henry James — porquê? E trata-se mesmo de uma decisão sua, enquanto personagem e narrador, ou é uma partida de Bernhard? Sobre o Pascal do pintor Strauch não tenho dúvidas, é um livro qualquer, quer dizer, todos. Além disso é possessivo: é o Pascal do pintor Strauch .  Agora o Henry James não me sai da cabeça. Às vezes acho que é “A fera na selva”, a seguir percebo que só pode ser “O desenho no tapete”, depois volto à estaca zero: nem fera nem desenho, é outra coisa.

Não desejo isto a ninguém, nem mesmo ao pior inimigo

(...)  A leitura de um livro é, hoje, para muita gente, um acto anacrónico, anti-democrático, sem qualquer força de atracção para quem se habituou a tudo o que é interactivo. Num livro recente, Pouvoirs de la lecture. De Platon au livre électronique , o filósofo e musicólogo francês Peter Szendy, professor numa universidade norte-americana, começa por se referir a esse imperativo da leitura e conta como se sentiu espantado por uma série de decisões judiciais que prescreviam a leitura como pena a cumprir pelo réu. A primeira história que ele conta, leu-a no Courrier international em Julho de 2009 e tinha como título Pior do que a prisão, a leitura . Tratava-se aí da condenação de um cidadão turco, condenado por um tribunal do seu país a quinze dias de prisão, uma pena comutada em obrigação de ler uma hora e meia por dia, sob vigilância policial, durante alguns meses. Quando um jornal local perguntou ao indivíduo sentenciado como é que ele sentiu a sua entrada, pela primeira vez, na bibl

Imersão na lama

Depois do ciclo integral de Hong Sang-soo numa estância de verão abandonada, lembrei-me agora de lançar um curso prolongado e decadente sobre o Tango de Satanás .  Uma turma fechada numa casa velha no cu de Judas — duas ou três  semanas. Tinha de chover ininterruptamente. Vento também, forte e em grande quantidade. Comíamos batatas com paprika e bebíamos pálinca como se seguíssemos o método Stanislavsvki. Líamos e discutíamos os capítulos sem ordem nenhuma. Podíamos começar pelo fim, quando o doutor descobre o que é a escrita — a música que ele ouve também vem de Shakespeare, pois claro, que a vida não é só a realidade. Depois passávamos para o capítulo anterior e ia ser uma diversão encontrar retratos corrosivos da academia e da crítica literária naquelas personagens burocráticas que afinam os relatórios pidescos (Kraszhahorkai é um bocado exagerado mas também um cómico). Deus podia ser uma teia de aranha como em certos filmes e o diabo um estado de alma quebrada ou um ritmo coxo. O

Weigel-Brecht

A última casa onde Weigel e Brecht viveram fica ao lado do cemitério francês de Berlim, em Chausseestrasse. Mudaram-se para ali no princípio de 1954. Todas as janelas têm vista para o cemitério. A casa é tranquila e luminosa. Weigel e Brecht estão enterrados na parte do cemitério mais próxima da casa, do outro lado das janelas. O túmulo fica aos pés de um enorme castanheiro-da-índia. Quando o vento sopra, um ouriço cai com estrondo sobre as lápides. Há castanhas espalhadas por toda a parte. Duras, selvagens, incomestíveis.

Urnas com cinzas são mais fáceis de transportar

Mas, em toda a Grécia, os que partiram com os Átridas deixaram em suas casas um luto que oprime a alma e mil preocupações que assolam o coração. Sabe-se quais os que partiram; agora, em vez de homens, são urnas e cinzas que regressam a cada casa. Ares, o que transforma os vivos em mortos e é fiel da balança nas batalhas, envia de Ilion aos parentes o pó das fogueiras, o que lhes arranca lágrimas amargas, fazendo deles, em vez de homens, cinzas que enchem as urnas fáceis de transportar. (...) Terríveis são os propósitos do povo animado pelo ressentimento, e sempre a maldição popular pagou a quem lhe deve. Sinto-me angustiado pelo medo de assistir a alguma trama tenebrosa, pois aqueles que fazem correr sangue nunca escapam aos olhares dos deuses. Um dia virá, no curso das vicissitudes que consomem a nossa vida, em que as negras Erínias destruirão o homem feliz que menosprezou a justiça, e não há qualquer apelo para aquele que elas fazem desaparecer. Ésquilo, Agamémnon . Tradução de Virg

Rentrée

Recordo que naqueles anos não muito distantes de 70 houve uma greve de lixeiros em Paris e a cidade estava coberta de lixo. As ratazanas roçavam as pernas dos transeuntes e um fumo excrementício emanava das montanhas de matéria decomposta. Todos os dias, enquanto durou a greve, Beckett telefonava a Cioran para irem dar um passeio juntos. “Paris nunca foi tão bela”, comentava Beckett com exaltação juvenil. 

Filosofia para os trabalhadores

Até acho fixe pagar a tal graduação , mas duvido do resto.  A cena da caixa é tão batida que já nem merece comentários.  «Ver coisas que outros ainda não viram» — ora bem, se conseguirem mesmo ver coisas inauditas, de certeza que isso não vai ser bom nem para a competitividade nem para os negócios. E a filosofia a servir de analgésico é uma ideia muito preguiçosa e estúpida.  O que espero (no fundo do fundo sou muito optimista) é que, concluída a pós-graduação, os trabalhadores se despeçam do grupo Dst com uma boa argumentação (a filosofia ensina a pensar e argumentar, não é?) — pelo menos assim não se perdia tudo.

Não queiras

IO: O oráculo é difícil de sondar... PROMETEU: Não queiras a miséria toda aprofundar. Ésquilo, Prometeu Agrilhoado .
Nunca ter visto nenhum filme de Bela Tárr foi uma sorte, agora posso imaginar as imagens d’ O Tango de Satanás  à vontade. São todas assustadoras. É curioso que o filme tenha sido rodado a preto e branco. Ao ler o romance de László Krasznahokai, sinto uma cor a alastrar: um castanho esverdeado profundamente agonizante, uma cor de carácter geográfico, digamos assim, que nunca é nomeada mas entranha-se como uma doença. Tem a ver com a chuva a misturar-se com a terra e restos orgânicos e é um prenúncio de podridão.

Fin de partie

Uma das coisas que mais me impressiona em Godard é a forma como ele se dedica às pessoas e às ideias, como decifra palavras, imagens, gestos, sons, a própria alma; como baralha tudo e depois afasta-se a alta velocidade, ultrapassando os objectos amados. Parece um cometa ou uma máquina inteligentíssima e selvagem feita de luz, sombra, mãos. Também foi assim na morte: antecipou-se a Federer, deixou para trás o estuporado do Cioran. Ficamos tão desamparados.

O charme discreto da burguesia

Ontem à noite fomos a Coimbra ver a Companhia de Latão, de São Paulo. Depois do espectáculo , ficámos mais um pouco para assistir à conversa com os actores e o encenador. Quando tudo terminou, e enquanto ainda estávamos dentro da sala, muito filosoficamente distraídos com os amigos, vi os próprios actores e o encenador desmontarem o cenário e arrumarem os adereços. Gestos simples, precisos e experientes de mil anos. Minutos antes, tínhamos estado a falar sobre poder, dinheiro e exploração do trabalho. Voltámos para casa. Dormimos tranquilos. A consciência limpa como um lençol branco e cómodo.

Fórmula negativa

No meu cartão de segurança social figura a menção: escritor não assalariado. Se acrescentássemos um outro «não» antes de escritor, a fórmula seria exacta e a minha situação perfeita e claramente definida. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Cor-de-rosa

Alguém decidiu cobrir o edifício da Câmara do Porto com duas telas colossais onde figuram imagens da rainha de Inglaterra . Parecem as páginas centrais de uma gigantesca revista cor-de-rosa, pousada no cimo da Avenida dos Aliados. Papel de revista sem préstimo nenhum, inútil para acender fogueiras ou embrulhar peixe.

Fazer um bocado de arqueologia

Ao ler a entrevista de Paulo Nozolino , as coisas que ele diz sobre o Mediterrâneo, aquela fotografia do rochedo — ah, é uma alegria estranha perceber que conseguimos adivinhar certas relações invisíveis. Deve ser isto que as bruxas sentem.

Espectros

À noite, sem mesas e cadeiras, as esplanadas que ficaram do tempo da pandemia lembram palcos de teatro. Centenas de palcos espalhados por toda a cidade. Vazios, silenciosos, abandonados. Os fantasmas dos actores do passado divertem-se.