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Imersão na lama

Depois do ciclo integral de Hong Sang-soo numa estância de verão abandonada, lembrei-me agora de lançar um curso prolongado e decadente sobre o Tango de Satanás

Uma turma fechada numa casa velha no cu de Judas — duas ou três  semanas. Tinha de chover ininterruptamente. Vento também, forte e em grande quantidade. Comíamos batatas com paprika e bebíamos pálinca como se seguíssemos o método Stanislavsvki. Líamos e discutíamos os capítulos sem ordem nenhuma. Podíamos começar pelo fim, quando o doutor descobre o que é a escrita — a música que ele ouve também vem de Shakespeare, pois claro, que a vida não é só a realidade. Depois passávamos para o capítulo anterior e ia ser uma diversão encontrar retratos corrosivos da academia e da crítica literária naquelas personagens burocráticas que afinam os relatórios pidescos (Kraszhahorkai é um bocado exagerado mas também um cómico). Deus podia ser uma teia de aranha como em certos filmes e o diabo um estado de alma quebrada ou um ritmo coxo. O resto era do mesmo género: ensaiar passos, espiar as personagens, estiolar. A sequência de Estike ficava de fora — protegida de qualquer análise, era só ler e chorar. 

Apesar de tudo, podia ser um sucesso e, quem sabe, talvez o início de uma carreira promissora como promotora de eventos culturais imersivos.

Comentários

c disse…
Achas que se pode transformar a ideia num negócio? Uma cena moderna e tendenciosa, talvez? Como as empresas prósperas falam inglês, até podia chamar-se it tango.
atalhos disse…
Não gostaria de vir aqui com a função de desmancha-prazeres :), mas a ideia de tango hit parade, baseada em leituras tristes, embora alegre, parece-me votada ao fracasso (conquanto as pessoas, hoje, procurem experiências verdadeiramente únicas!). E digo isto com a mesma melancolia com que vi em certa tarde, e há uns bons anos, O Cavalo de Turim. Éramos três almas perdidas num enorme anfiteatro. A certa altura, uma das almas desceu a escada, rumo ao centro comercial. Um tango tem sempre a ironia de se poder dançar de trás para a frente. Nunca mais quis ver o filme. Acho que vou morrer a comer uma batata cozida todos os dias ao jantar. E isto, enquanto conseguir pagar, tal como Herberto Helder em A morte sem Mestre, uma bilha de gás.
Se a coisa se vender em pacotes na FNAC e embrulhada em promessas do tipo "uma viagem única", "uma experiência imersiva", "a nova cena do tango" e "Satanás como nunca o viu", talvez funcione. Depois, com os primeiros trocos, compra-se um espaço na Time Out, outro na Monocle, e pronto. Tens um unicórnio.