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Mensagens

O mercado a funcionar

Na rua do Almada, mesmo em frente à Mala Voadora, há uma pequena da loja de tralhas e eletrodomésticos. Na montra, quase encostados ao vidro, vi os seguintes objectos: um disco de fogão que cabe num A5, uma cafeteira para um café e até o que me pareceu ser uma máquina de café de cápsulas de bolso. Comecei por pensar que se destinavam a pessoas que vivem sozinhas, mas depois percebi que não era nada disso, estes objectos minúsculos são para as pessoas que vivem em espaços reduzidos, em quartos ou camas amontoadas em lojas ou garagens. A normalização começa assim, quando o mercado se adapta. E o mercado até gosta desta ideia de ocuparmos vivos o pequeno espaço que vamos ocupar mortos. E pagarmos muito por isso. Rende mais.

Saint Omer, de Alice Diop

Laurence Coly é uma infanticida confessa. Abandonou a filha de quinze meses uma noite, numa praia do norte de França, durante a maré alta, para que o mar a engolisse. O pequeno corpo sem vida deu à costa pouco tempo depois, sendo descoberto por um pescador. Quando o julgamento começa, a juíza pergunta a Laurence por que razão matou a filha. Ela diz que não sabe e que espera que o julgamento a ajude a encontrar uma resposta. Nesse exacto momento, o filme entra em absoluto estado de graça. Sai da treva e entra na luz, sai da luz e cai num abismo. O princípio e o fim unem-se no mesmo ponto: o coração do mistério. O filme é sobre essa esperança, alimentada por um medo que vem do fundo dos tempos, de um dia encontrarmos uma resposta, compreendermos qualquer coisa.

A pulseira de prata, o universo espacial e as assinaturas do sobrinho e de Aurora Pinto

Leio num jornal que a «livraria» Lello inaugura hoje uma exposição dedicada a Saint-Exupéry, «que vai mostrar, pela primeira vez em Portugal, a pulseira de prata do autor de O principezinho ». A «livraria» pretende ainda assinalar o dia do octogésimo aniversário da publicação do livro com o lançamento de uma «edição impressa em prateado, com páginas azuis escuras, numa alusão ao universo espacial». Os exemplares deste livro, lê-se ainda na mesma notícia, «serão assinados pelo sobrinho do autor e por Aurora Pinto, da livraria».

Equivalências

Um livro sobre Helen Keller, muda e cega, conta, entre outras coisas, como a sua preceptora lhe explicava o branco e o negro com a ajuda de um piano: no mais alto do teclado, era o branco; o negro ocultava-se nos sons mais profundos... Para que a obra de Tchékhov, para que o homem Tchékhov atinjam a consciência de um público não-russo ser-me-á necessário encontrar uma equivalência semelhante à dos sons-cores. Elsa Triolet, A vida de Anton Tchékhov . Tradução de Alfredo Brás.

Una salida al campo

A influência de Rohmer em Têm de vir vê-la é visível e, acho que o posso dizer, assumida: homens e mulheres a conversarem sobre isto e aquilo, a cidade e o campo, os gestos vulgares do dia a dia, e até o livro de um filósofo; tudo isso confere o parentesco.  Mas, talvez porque não falam em francês, as personagens de Jonás Trueba são mais soltas, o que dizem é mais inconsequente ou fica a pairar.  Só no fim, quando Elena (maravilhosa Itsaso Arana) se afasta e se agacha para fazer chichi entre as ervas e desata a rir  — uma das cenas mais bonitas que vi nos últimos tempos no cinema —, percebi de onde vem esta doçura que se espalha pelo filme como um som ou uma dança. Ah!

Peregrinos

Entrou em Pedro Hispano e saiu na Câmara de Matosinhos, já a conheço de vista. Contou a uma amiga que a patroa da senhora que saiu no Parque de Real foi a Fátima a pé e ela só tem de cozinhar para os dois doutores . Depois de um silêncio, acrescentou: Também sou peregrina. Somos todos . ( São velhas, dizem muitos lugares comuns, é uma forma de assegurarem uma pertença, creio, mas no meio, sai-lhes uma frase que nunca ouviram, que é mesmo delas. Às vezes até se admiram com a força e o brilho e repetem o aforismo com satisfação .)

Beckett

Alguns encontros  Para decifrar esse homem distinto que é Beckett, temos de insistir na locução «manter-se à parte», divisa tácita de cada um dos seus momentos, no que implica de solidão e obstinação subterrânea, na essência de um ser afastado, que persegue um trabalho implacável e sem fim. No budismo, diz-se que aquele que tende para a iluminação deve ser tão encarniçado como «o rato que rói um caixão». Todo o escritor verdadeiro desenvolve um esforço semelhante. É um destruidor que acrescenta à existência, que a enriquece ao miná-la.  «O tempo que passamos na terra não é suficientemente longo para o usarmos noutra coisa a não ser em nós mesmos.» Esta afirmação de um poeta aplica-se a quem recusa o extrínseco, o acidental, o outro . Beckett ou a arte inigualável de ser quem é. Com isso, nenhum orgulho aparente, nenhum estigma inerente à consciência de ser único: se a palavra amenidade não existisse, teríamos que a inventar para ele. Coisa difícil de acreditar, até monstruosa: ele n

Horário nobre, nação valente & outras coisas rocambolescas

Se a vontade de comer um gelado foi influenciada por João César Monteiro (dica de Pedro Mexia?), só espero uma coisa da comunicação de logo à noite.

Disponibilidade para a solidão

Os discursos de António Costa são mal amanhados e quando ele se irrita (e irrita-se muitas vezes) engasga-se nas palavras e as frases parecem refletir pensamentos encavalitados e isso é mau — principalmente para os comentadores que apreciam a fineza oratória. No entanto, no discurso de ontem, creio que já perto do fim, Costa falou em «disponibilidade para a solidão» — talvez estivesse a pensar no Príncipe de Salina, talvez não, mas foi a melhor parte do discurso.

Violência histórica II

In 1953, Tanaka boldly turned to directing her own features in an industry deprived of female filmmakers and amid outcries from her mentors (particularly Mizoguchi). Nevertheless, she fulfilled her ambition with the help of the young studio Shintoho and her faithful friends Ozu and Naruse, as well as the groundbreaking gay filmmaker Keisuke Kinoshita, who penned the screenplay for her directorial debut, Love Letter, which went on to receive critical acclaim at the 1954 Cannes Film Festival.

Liberal Radical Autêntico

Já são conhecidos os resultados das eleições presidenciais no Paraguai. O candidato derrotado, Efraín Alegre, é o líder do Partido Liberal Radical Autêntico. Leio isto no jornal e ocorre-me de imediato a imagem de Nanni Moretti, de roupão e touca, em Palombella Rossa , a gritar como um louco: «Le parole sono importanti! Le parole sono importanti!»

Violência histórica I

Fiquei completamente espantada com a violência contida nos filmes de Kinuyo Tanaka. Tem a ver com as propriedades do melodrama, claro — mas não é só isso. A força que oprime as personagens não vem apenas do argumento, mas de uma outra história mais longínqua e perigosa.

Acção paralela

«O activismo conhece a lógica e o tempo da revolta, mas sabe que passou o tempo da revolução. Por vezes, esses movimentos assemelham-se mais a jam sessions do que a manifestações que guardam a memória das grandes palavras de ordem que se julgavam perfomativas.» É preciso ler muito, pensar muito, fazer ligações esquisitas e mais não sei o quê, para escrever estas crónicas. Admiro tudo isso, mas o que mais gosto no António Guerreiro é a capacidade para perceber o ritmo do nosso tempo. Estes textos breves — e tão solitários — têm qualquer coisa de transe xamânico.

Para nada! Para nada!

FIOR: Como o tempo corre! Considerem, por exemplo, aquele banco. Parece imóvel, mas como corre! Corre e corre... mas para onde? Hum? Para onde? Em que direcção, porquê? Tudo corre e corre, meu Deus! HUFNAGIEL (canta) : Oh, um galope, galope, galope! Chicoteá-lo uma vez, chicoteá-lo outra vez. (...) Não costumo cair de uma sela. Não, não costumo cair de uma sela. O galope é a minha especialidade! Permita-me, mestre, não partilhar da sua inquietação. Aquele banco? Correr? Galopar? Não saber aonde se vai? E então? Monto, corro, galopo! Não costumo cair de uma sela! (...) FIOR: Galope... sim, sim... galope... Como é fácil montar um cavalo, correr, correr... Mas pior que a corrida de um cavalo É a ideia de imobilidade... Galope imóvel! Galope pleno que não se mexe, mas corre, corre... Toca no banco. Para onde vais, banco? Porque corres como um louco? Hum? Para onde? Porquê? Oh, tudo, tudo, tudo, árvores e pedras, Casas e igrejas, terra, céu, tudo Como cavalos galopando! Mas eu não me mover

Lagom

«… o único segredo da felicidade é renunciar a tudo.» (Cristina da Suécia)  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (escrito em maio de 1968) Volto aos Cadernos de Cioran como quem volta a casa ou, pelo menos, a um lugar conhecido mas estranho ao mesmo tempo. Se ele soubesse deste (nem sei bem que palavra escolher, talvez enlevo com sotaque açoriano a meio do atlântico?) pois sim, enlevo ou alegria, era capaz de ficar um bocado chateado e um bocado vaidoso. Estou em junho de 1968 — temos praticamente a mesma idade.

Very strange

Segundo o catálogo , o único livro da Deborah Levy existente na Biblioteca Almeida Garrett é  Coisas que não quero saber . Então, O homem que via tudo , que encontrei por acaso numa das estantes, é uma espécie de espectro. Esta constatação circunstancial já é uma crítica literária — sem sujeito e, apesar de se tratar de uma imagem intangível, material e elucidativa.

Não é assim tão simples

“Tenho de falar inglês de um modo que não revele a minha personalidade”, respondeu. “A tradução é assim. A personalidade do tradutor tem de se esconder.” “Estás a dizer que te escondes dentro de todas as línguas que traduzes? Como alguém se esconde numa floresta? Encolheu os ombros. “Não é assim tão simples.” Depois riu-se. O homem que via tudo, de Deborah Levy. Tradução de Alda Rodrigues.