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Beckett


Alguns encontros 

Para decifrar esse homem distinto que é Beckett, temos de insistir na locução «manter-se à parte», divisa tácita de cada um dos seus momentos, no que implica de solidão e obstinação subterrânea, na essência de um ser afastado, que persegue um trabalho implacável e sem fim. No budismo, diz-se que aquele que tende para a iluminação deve ser tão encarniçado como «o rato que rói um caixão». Todo o escritor verdadeiro desenvolve um esforço semelhante. É um destruidor que acrescenta à existência, que a enriquece ao miná-la. 

«O tempo que passamos na terra não é suficientemente longo para o usarmos noutra coisa a não ser em nós mesmos.» Esta afirmação de um poeta aplica-se a quem recusa o extrínseco, o acidental, o outro. Beckett ou a arte inigualável de ser quem é. Com isso, nenhum orgulho aparente, nenhum estigma inerente à consciência de ser único: se a palavra amenidade não existisse, teríamos de a inventar para ele. Coisa difícil de acreditar, até monstruosa: ele não diz mal de ninguém, ignora a função higiénica da malevolência, as suas virtudes salutares, a sua qualidade de escape. Nunca o ouvi rebaixar amigos ou inimigos. É uma forma de superioridade que me faz ter pena dele e pela qual deve sofrer inconscientemente. Se me impedissem de caluniar — oh, quantos distúrbios e moléstias, quantas complicações em perspectiva! 

Ele não vive no tempo, mas paralelamente ao tempo. É por isso que nunca me ocorreu perguntar-lhe o que pensava deste ou daquele acontecimento. É um desses seres que fazem crer que a história é uma dimensão da qual o homem podia prescindir. 

Se fosse parecido com os seus heróis, se não tivesse nenhum sucesso, seria exactamente o mesmo. Dá a impressão de não se querer afirmar de jeito nenhum, de ser igualmente alheio à ideia de sucesso e de fracasso. «Ah, como é difícil decifrá-lo! E que classe tem!» É o que digo a mim mesmo sempre que penso nele. Se, por improvável que fosse, não escondesse nenhum segredo, ainda assim surgiria aos meus olhos como impenetrável. 

Venho de um canto da Europa onde os excessos, a descompostura, a confidência, a confissão imediata, não solicitada, impúdica é de rigor, onde todos sabem tudo, onde a vida em comum se resume a um confessionário público, onde precisamente o segredo é inimaginável e onde a verbosidade raia o delírio. 

Só isso já bastava para explicar porque era impossível resistir ao fascínio por um homem sobrenaturalmente discreto. 

A amenidade não exclui exasperação. Num jantar em casa de amigos, como o pressionaram com perguntas inutilmente eruditas sobre si e a sua obra, refugiou-se num mutismo completo e acabou mesmo por nos voltar as costas — ou quase. O jantar ainda não tinha terminado quando se levantou e saiu, concentrado e sombrio, como antes de uma operação ou de uma carga de porrada. 

Há cerca de cinco anos, ao encontrá-lo por acaso na rua Guynemer, perguntou-me se eu trabalhava, respondi-lhe que tinha perdido o gosto pelo trabalho, que não via necessidade de me manifestar, de «produzir», que escrever era um suplício ... ele pareceu ficar muito surpreendido, e eu ainda mais quando, precisamente a propósito de escrever, ele falou de alegria. Será que usou mesmo essa palavra? Sim, tenho a certeza. Nesse mesmo instante, lembrei-me de que, durante o nosso primeiro encontro, dez anos antes, no Closerie des Lilas, ele tinha-me confessado a sua enorme lassidão, a sensação de que já não podíamos extrair nada das palavras. 

… As palavras, quem as terá amado tanto como ele? São as suas companheiras e o seu único apoio. Ele, que não reivindica nenhuma certeza, sentimos que é muito sólido no seu meio. Os seus acessos de desânimo coincidem sem dúvida com os momentos em que deixa de acreditar nelas, quando imagina que o traem, que fogem dele. Quando desaparecem, ele fica desamparado, já não está em sítio nenhum. Lamento não ter assinalado e contado todos as ocasiões em se referia às palavras, em que se debruçava sobre as palavras, — «gotas de silêncio através do silêncio», como delas se diz em O Inominável. Símbolos de fragilidade convertidos em fundamentos indestrutíveis. 

O texto francês Sans, em inglês chama-se Lessness, vocábulo forjado por Beckett, assim como forjou o equivalente alemão Losigkeit

Esta palavra Lessness (tão insondável como o Ungrund de Boehme) enfeitiçou-me, uma noite disse a Beckett que não me deitava até encontrar um equivalente honroso em francês… Tínhamos considerado juntos todas as formas possíveis sugeridas por sans e moindre. Nenhum parecia aproximar-se do inesgotável Lessness, mistura de privação e infinito, vacuidade sinónimo de apoteose. Separamo-nos bastante desapontados. Ao regressar a casa, continuei a virar e revirar na minha cabeça esse pobre sans. Quando estava prestes a capitular, ocorreu-me a ideia de que devia procurar no latim sine. No dia seguinte escrevi a Beckett que sinéité me parecia a palavra desejada. Ele respondeu-me que também tinha pensado nisso, talvez ao mesmo tempo. O nosso achado, no entanto, tem de se reconhecer, não o era. Chegamos a acordo que tínhamos de abandonar a investigação, que não havia substantivo francês capaz de exprimir a ausência em si, a ausência em estado puro, e que tínhamos de nos resignar à miséria metafísica de uma preposição. 

Com escritores que não têm nada a dizer, que não têm um mundo próprio, só se fala de literatura. Com ele, muito raramente, na verdade quase nunca. Qualquer assunto quotidiano (dificuldades materiais, problemas de todos os tipos) interessavam-no mais — nas conversas, é claro. O que ele não tolera em caso algum são perguntas como: acha que esta ou aquela obra está destinada a perdurar? fulano ou sicrano merece o lugar que tem? Entre X e Y, quem sobreviverá, qual é o melhor? Qualquer avaliação deste tipo deixa-o cansado e deprimido. «Para quê tudo isso?» disse-me depois de um sarau particularmente penoso quando, à mesa, a discussão parecia uma versão grotesca do Juízo Final. Ele mesmo evita pronunciar-se sobre os seus livros e as suas peças: o que lhe importa não são os obstáculos superados, mas os obstáculos a superar: ele funde-se completamente com o que está a fazer. Se o interrogarmos sobre uma peça, não se vai deter no fundo, no significado, mas na interpretação da qual ele imagina os mínimos detalhes, minuto a minuto, diria até segundo a segundo. Tão cedo não esquecerei o brilhantismo com que me explicou os requisitos que deve cumprir a actriz que queirar representar Not I, onde uma voz ofegante domina sozinha o espaço e o substitui. Que brilho nos seus olhos enquanto via aquela boca ínfima, mas intrusiva, onipresente! Parecia que estava a assistir à última metamorfose, ao supremo trambolhão da Pítia!

Tendo sido toda a minha vida um amante de cemitérios e sabendo que Beckett também os amava (Premier amour, recorde-se, começa com a descrição de um cemitério, que, aliás, é o de Hamburgo), no inverno passado, na avenue de l'Observatoire, falei-lhe de uma visita recente ao Père-Lachaise e da minha indignação por não encontrar Proust na lista de «personalidades» ali enterradas. (Por falar nisso, descobri o nome de Beckett pela primeira vez há cerca de trinta anos na Biblioteca americana, dia quando um dia me deparei com o seu livrinho sobre Proust.) Não sei como chegamos a Swift, embora, pensando bem, não houvesse nada de anormal na passagem, dada o carácter fúnebre da sua troça. Beckett disse-me que estava a reler as Viagens, e que tinha uma predileção pelo «País dos Houyhnhnms», especialmente pela cena em que Gulliver fica louco de terror e de repugnância com a abordagem de uma mulher yahoo. Ele disse-me — e foi uma grande surpresa para mim, sobretudo uma grande decepção — que Joyce não gostava de Swift. Além disso, acrescentou, Joyce, ao contrário do que se pensa, não tinha inclinação nenhuma para a sátira. «Nunca se revoltou, era desapegado, aceitava tudo. Para ele, não havia diferença nenhuma entre a queda de uma bomba e a queda de uma folha…» 

Julgamento admirável que, pela acuidade e pela estranha densidade, lembra-me o de Armand Robin, em resposta à pergunta que um dia lhe fiz: «Porque é que, depois de ter traduzido tantos poetas, não se deixou tentar por Chuang-Tzu, o mais poético de todos os sábios?» —«Pensei nisso muitas vezes, respondeu ele, mas como traduzir uma obra que só pode ser comparada à paisagem árida do norte da Escócia?» 

Desde que conheço Beckett, quantas vezes não me perguntei (pergunta obsessiva e bastante estúpida, concordo) sobre a relação que mantém com as suas personagens. Que têm em comum? Pode-se imaginar disparidade mais drástica? Devemos admitir que não só a existência deles, mas também a sua, é banhada por aquela «luz de chumbo» mencionada em Malone meurt? Muitas das suas páginas parecem-me um monólogo após o fim de algum período cósmico. Sensação de entrar num universo póstumo, numa geografia sonhada por um demónio, liberto de tudo, até mesmo da sua maldição! Seres que ignoram se ainda estão vivos, vítimas de uma fadiga imensa, uma fadiga que não é deste mundo (para usar uma linguagem que vai ao encontro dos gostos de Beckett), todos concebidos por um homem que se adivinha vulnerável e que usa a máscara da invulnerabilidade por pudor, — não há muito tempo, num lampejo, tive a visão das ligações que uniam as personagens ao seu autor, ao seu cúmplice... Isso que vi, ou melhor, o que senti nesse instante, não o consigo traduzir numa fórmula inteligível. No entanto, desde então, a mais pequena palavra dos seus heróis lembra-me as inflexões de uma certa voz... Mas apresso-me a acrescentar que uma revelação pode ser tão frágil e tão enganosa como uma teoria. 

Desde o nosso primeiro encontro compreendi que ele tinha chegado ao extremo, que talvez tivesse começado por aí, pelo impossível, pelo excepcional, pelo impasse. E o que é admirável é que não se mexeu, tendo chegado desde o início a um muro, persevera tão valente como sempre: a situação limite como ponto de partida, o fim como advento! Daí a sensação de que esse seu mundo, esse mundo crispado, agonizante, podia continuar indefinidamente, mesmo quando o nosso viesse a desaparecer. 

Não sou especialmente atraído pela filosofia de Wittgenstein, mas tenho uma paixão pelo homem. Tudo o que leio sobre ele tem o dom de me emocionar. Mais de uma vez encontrei traços comuns entre ele e Beckett. Duas aparições misteriosas, dois fenómenos que ficamos felizes por serem tão intrigantes, tão inescrutáveis. Num e noutro, a mesma distância dos seres e das coisas, a mesma inflexibilidade, a mesma tentação do silêncio, do repúdio final ao verbo, a mesma vontade de esbarrar em limites jamais previstos. Noutros tempos, teriam sido atraídos para o Deserto. Sabemos agora que Wittgenstein, em determinada altura, pensou entrar para um convento. Quanto a Beckett, podemos facilmente imaginá-lo, alguns séculos atrás, numa cela nua, sem nenhuma decoração, nem mesmo um crucifixo. Estou a divagar? Relembre-se então o olhar distante, enigmático, «inumano» que ele tem em algumas fotos. 

O nosso início importa, é claro; mas só damos o passo decisivo em direção a nós mesmos quando não temos mais origem, e oferecemos tão pouco material para uma biografia como Deus... É importante e não é nada importante que Beckett seja irlandês. O que certamente é falso é afirmar que ele é «o típico anglo-saxão». Em todo caso, nada poderia desagradá-lo mais. É a má memória que ele guarda da sua estadia em Londres antes da guerra? Suspeito que acusa os ingleses de «vulgares». Este veredicto, que ele não formulou, mas formulo eu no seu lugar como um resumo das suas reservas, se não dos seus ressentimentos, não o podia assumir sozinho, tanto mais que, por ilusão balcânica talvez, os ingleses parecem-me o povo mais desvitalizado e ameaçado, portanto o mais refinado, o mais civilizado. 

Beckett que, muito curiosamente, se sente completamente em casa na França, na verdade não tem nehuma afinidade com uma certa secura, virtude eminentemente francesa, digamos parisiense. Não é significativo que tenha traduzido Chamfort em verso? Nem todo Chamfort, é certo, mas apenas algumas máximas. A tarefa, notável em si mesma e de resto quase inconcebível (se pensarmos na ausência de sopro lírico que caracteriza a prosa esquelética dos moralistas), equivale a uma confissão, não ouso dizer a uma proclamação. É sempre involuntariamente que os espíritos secretos traem o fundo da sua natureza. A de Beckett é tão impregnada de poesia que dela é indistinguível. 

Acredito que é tão obstinado como um fanático. Mesmo que o mundo estivesse a desmoronar, ele não abandonaria o trabalho em curso nem mudaria de assunto. Nas coisas essenciais, é facilmente influenciado. Para o resto, para o inessencial, é indefeso, provavelmente mais fraco que todos nós, mais fraco até mesmo que as suas personagens... Antes de redigir estas notas, tive o propósito de reler o que, em perspectivas diferentes, Mestre Eckhart e Nietzsche escreveram sobre o «homem nobre». Não executei o meu projecto, mas não esqueci nem por um só momento que o tinha pensado. 


Emil Cioran, escrito em 1976 e publicado em «Exercícios de Admiração, Ensaios e Retratos», Gallimard, 1986.



Comentários

Luis Eme disse…
Graças a ti, Cristina, fiquei a conhecer Emil Cioran (por curiosidade, acabei por conhecer um pouco mais da sua vida quase de "apátrida" (mesmo que voluntariamente).

Penso que estás a traduzir uma das suas obras. Gostaria apenas de saber se está para breve a sua edição.
c disse…
Traduzi "Lágrimas e Santos" (https://www.almedina.net/lagrimas-e-santos-1666793781.html) e "Caderno de Talamanca" (edição pirata https://we.tl/t-UZkNPeqxoB).

Estou a traduzir os "Cadernos" (https://www.fnac.com/a931091/Cioran-Cahiers), mas é um livro volumoso e ainda não sei se será editado. De qualquer das formas, só devo terminar lá para o fim do ano e depois vou precisar de tempo para rever... é uma obra de santa engrácia :)

"Desde o nosso primeiro encontro compreendi que ele tinha chegado ao extremo, que talvez tivesse começado por aí, pelo impossível, pelo excepcional, pelo impasse. E o que é admirável é que não se mexeu, tendo chegado desde o início a um muro, persevera tão valente como sempre: a situação limite como ponto de partida, o fim como advento! Daí a sensação de que esse seu mundo, esse mundo crispado, agonizante, podia continuar indefinidamente, mesmo quando o nosso viesse a desaparecer."

Fixe. É perfeito.