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Mensagens

Olhar pela janela

É cedo. Ainda não há turistas no metro. Apenas gente que se desloca para o trabalho e que, como sempre, faz a viagem sem levantar os olhos do telemóvel. De súbito, apercebo-me de um tipo, o único na carruagem cheia, que olha pela janela. Não tem telemóvel. Não tem um livro, um jornal. Limita-se a olhar pela janela, estação após estação. Quem é ele? Um fantasma do passado? Um sábio? Um louco?

Virtudes

Domingo de tarde. Está calor. Estendemos as toalhas nas Virtudes, debaixo de uma oliveira, e pomo-nos a ler: «Estava ali como na sua varanda, ao sol de Maio, o jornal em cima do rosto e uma vareja a zumbir em volta dele, tétrica» (Agustina, Escritos sobre Cinema, p. 67.)

- Dá-lhe, Vássenka, dá-lhe!

O menino com botas de marroquim e casaquinho de veludo, cabelo barrado a brilhantina, repuxado para trás nas têmporas, está rodeado de tias, vovós e amas-secas, e, em frente dele, um ajudante de cozinha ou de cocheiro - rapazinho da criadagem. Toda a matilha de arcanjos ciciantes, açulantes e ceceantes instiga o jovem senhor: - Dá-lhe um murro, Vássenka, dá-lhe! Já o Vássenka vai bater, e as velhas tias - sapos nojentos - empurram-no e agarram o cocheirinho sarnento: - Dá-lhe, Vássenka, dá-lhe, que nós seguramos o moreno e dançamos à roda. O que é isto? Pintura do género Venetsiánov? Esboço de um pintor da gleba? Não. É o treino do topetudo jovem comunista, sob a orientação das tias, avós e amas-secas da propaganda política, a fim de que ele, Vássenka, dê um murro, e entretanto nós agarramos o trigueiro e bailamos de roda... - Dá-lhe, Vássenka, dá-lhe! Óssip Mandelstam, Crepúsculo da Liberdade . Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.
«Maria levantou-se e partiu apressadamente» é um bom princípio para uma história, de preferência de protesto. Pode ser assim:

Jornada

Um Papa que perdia a fé e abandonava o Vaticano depois de uma declaração pública de ateísmo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

«A vida é um estado de ambição»

Trouxe Areias Brancas da Biblioteca. É o primeiro livro de Geoff Dyer que leio e encontrei-o por acaso. Na página 190, por duplo acaso: outra citação de Cioran*. No póquer, um par é apenas a oitava melhor mão possível. No resto, desconfio que ainda é menos. «E. M. Cioran diz que a toupeira cegamente escavando o seu túnel é ambiciosa, que «a vida é um estado de ambição », mas que, na compreensão habitual, a ambição tem sempre um objectivo qualquer para lá das satisfações que a tarefa proporciona: aclamação, reconhecimento, fama, dinheiro.» * A tradução do que não está entre aspas não é grande coisa; no original de Cioran e na versão francesa de Dyer não há gerúndio (é no que dá traduzir a partir do inglês). O advérbio é invenção de Dyer e, mais do que mudar o verbo, creio que se trata de uma  interpretação subtil — se fosse «às cegas» em vez de «cegamente», nem tinha notado.  A citação não existe no texto original publicado pela Harper's em abril de 2016.

Tchékhov, contos de impacto e funis de venda

 

Agora é que acaba

Espero que os direitos d’ O Passageiro e Stella Maris sejam caros que chegue para afugentar adaptações tipo Netflix. Não precisamos que nos mostrem a beleza de Alicia nem os tiques do Puto esquizóide. É preferível imaginá-los de um modo difuso e não finito — não é para isso que a literatura serve? A única coisa que se pode acrescentar ao díptico de Cormac Mccarthy é a banda sonora dos números de vaudeville:  Tom Waits a bater em latas, a fritar bacon , etc. Isso.

A dúvida como mecanismo de condução

Estabelecer uma relação entre Alicia e Cioran é uma ideia estúpida, mas bastante divertida. Acabei por descobrir (na verdade foi Alicia que descobriu) que a família dos Western (da parte da mãe) era originária da Roménia e, durante um certo tempo, Alicia teve o devaneio de fugir para lá (como se a Roménia fosse a floresta por excelência) com o irmão para viver um amor fora da lei. Claro que isso vale vários pontos na minha investigação falhada, mais até do que o suicídio que é penalizado por ser demasiado óbvio. Depois há muitas coisas que Alicia diz ao psiquiatra e ao Puto — mas não tirei notas, por isso fico-me por esta citação, já d’ O Passageiro (página 319), que podia ser um recadinho amoroso para o filósofo. E já chega disto. «(...) A ideia está sempre a lutar contra a própria concretização. As ideias surgem dotadas de um cepticismo inato, não aparecem e levam tudo à frente. E estas dúvidas têm a sua origem no mesmo mundo que gerou a própria ideia. E isto é uma coisa a que, na

Notas de viagem

Tuzla, Bósnia Na porta de um edifício público, três anúncios de óbito. Dois homens e uma mulher. Os anúncios são do mesmo tamanho e visualmente semelhantes, excepto o símbolo impresso no topo de cada um. O primeiro é uma inscrição islâmica, o segundo é uma cruz ortodoxa e o terceiro são duas penas cruzadas, sinal de que era ateu ou não tinha religião. Skopje, Macedónia do Norte O fachadismo de Skopje é o exacto oposto do fachadismo do Porto. O interior dos edifícios é o mesmo do tempo da Jugoslávia, mas as fachadas são substituídas por grotescas imitações neo-helénicas. No Porto, pelo contrário, mantém-se a fachada e arrasa-se o interior. Em ambos os casos, o passado não passa de um bibelô que se usa de acordo com o gosto e a política do momento. Skopje-Ohrid Estrada entre Skopje e Ohrid. No jardim de algumas casas, as pessoas cultivam flores e postes de betão com vários metros de altura onde adejam gigantescas bandeiras albanesas. Ao longe, parecem manchas de sangue, entre o céu e a

Que história é esta da poesia?

Num dos seus encontros, ao vasculhar nos papéis de Alicia, o Puto descobre que ela escreve poesia ( O Passageiro , página 316). Quase de certeza que Cormac não nos vai mostrar nem um verso. É um fora de campo brilhante porque nos desinquieta como uma picada.

A cerimónia típica vienense

Encontrei [Thomas] Bernhard poucas vezes, todas elas memoráveis. A primeira vez foi em Roma, com Ingeborg Bachmann e Fleur Jaeggy, no início da década de 1970. Bernhard havia lido um texto seu no Instituto Austríaco. Contou-nos que o director do Instituto se preocupou logo em lhe dizer, com a cerimónia típica vienense: «A cama onde vai dormir é a mesma em que Johannes Urzidil morreu há alguns meses.» Roberto Calasso, O Cunho do Editor . Tradução de José J. C. Serra.