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Começamos a saber o que é a solidão quando escutamos o silêncio das coisas. Então compreendemos o segredo enterrado na pedra e revelado na planta, o ritmo oculto ou visível da Natureza toda inteira. O mistério da solidão deriva do facto de para ela não existirem criaturas inanimadas. Cada objecto tem a sua linguagem, que deciframos graças a silêncios incomparáveis. Lágrimas e Santos, Emil Cioran. Edições 70, novembro 2022. 

Itinerário da alma vacilante

Rue de Vaugirard, Rue Rataud, Rue Lhomond, Rue du Pot-de-Fer, Rue Amyot, Rue du Cardinal-Lemoine, Rue Jean-de-Beauvais, Rue du Sommerard, Rue Médicis, Rue Guynemer, Rue Daru, Rue d'Orléans, Rue Saint-Denis, Rue de Tournon, Rue de l'Odéon, Rue d'Assas, Rue Garancière, Rue Cujas, Rue Servandoni, Rue Racine, Rue Vavin.  Place des Vosges, Place de l'Odéon, Place des Vosges, Place de la Concorde, Place de l’ Étoile, Place Saint-Sulpice, Place du Panthéon. Jardin des Plantes, Jardin du Luxembourg.

Singurătate şi destin

Durante muito tempo houve sobre a mesa de Cioran um caderno sempre fechado.  Após a sua morte, ao juntar os seus manuscritos para os confiar à Biblioteca Doucet, encontrei trinta e quatro cadernos idênticos. Só diferiam nas capas marcadas com um número e uma data. Iniciados em 26 de Junho de 1957, pararam em 1972.  Durante quinze anos, Cioran manteve no seu escritório, à mão, um desses cadernos, que parecia ser sempre o mesmo e que nunca abri. Neles encontramos entradas geralmente breves («Tenho o fragmento no sangue»), e a maior parte das vezes sem data. Apenas os acontecimentos considerados importantes estão datados, quer dizer, os passeios no campo e as noites de insónia — o que dá:  «Domingo, 3 de Abril. Caminhei todo o dia pelos arredores de Dourdan...»  «10 de Abril. Segui pelo canal Ourcq.» «24 de Novembro. Noite medonha.»  «4 de Maio. Noite atroz.»   Apesar do carácter repetitivo e monótono, guardei todas as passagens pois essas antífonas estão datadas.  Os cadernos de Cioran n

Obsessões e caprichos

Vou agarrar-me a estes cadernos pois são o único contacto que mantenho com a «escrita». Há meses que não escrevo mais nada.  Este exercício diário até é bom, permite-me aproximar-me das palavras, e despejar aqui as obsessões, ao mesmo tempo que os caprichos: o essencial e o inessencial ficarão registados por igual. E tanto melhor assim. Pois nada é mais ressequido e fútil do que a busca exclusiva da «ideia». O insignificante deve ter direito de cidadania, até porque é por ele que acedemos ao essencial. A anedota está na origem de toda a experiência capital. É por isso que é mais cativante do que qualquer ideia. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1968)

Maio de 1971

Prefiro um assassino gentil a um santo sem maneiras.  Gostava de ser canibal, menos pelo prazer de devorar esse imbecil do X, do que para o poder vomitar logo a seguir.  Exclamações . Que belo título!  Fui feito para vociferar ou para fazer chacota?  Para as duas coisas, para uma síntese irrealizável. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Universo falhado

É a última anotação dos Cadernos . Não tem data, pode ser novembro ou dezembro de 1972. Nota-se que Cioran está cada vez mais ferido, pressente-se o declínio. A partir daí, é preciso atravessar um túnel escuro. «Sem a ideia de um universo falhado, o espectáculo da injustiça sob todos os regimes levaria até mesmo um indiferente à camisa-de-forças.»

Uma vida sem achaques

Nas páginas 482 e 483 de Danúbio , Magris zurze em Cioran de uma forma tão violenta que tive de ler três vezes os parágrafos para conseguir registar a informação. É das coisas mais tristes que há, começar a gostar de um escritor que desanca assim em alguém que admiramos. Parece uma traição, mas contra a qual nem sequer me posso enfurecer porque não é directa, quer dizer, só existe se me meter entre os dois, fora isso é um ataque vulgar. Magris fala de Cioran como um tipo que forjou uns pensamentos de escapatória, uma negação absoluta que não passa de um expediente cómodo para resolver todos os problemas no conforto da sua mansarda em Paris. Soa tudo tão vil e afastado da minha perspectiva que não consigo nem perceber nem, muito menos, aceitar. E o que é mais estranho é que nas páginas dedicadas à Panónia, aos bogomilos, ao que é ser magiar, reconheci tantas coisas que leio nas pequenas anotações de Cioran.   Entretanto, talvez para me poupar a penosos exercícios intelectuais, o corpo

A escada

24 juin   Variations Goldberg … Après ça, il faut tirer l’échelle.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  A expressão francesa significa que se atingiu o máximo, não se consegue fazer melhor. Podemos meter o dicionário no bolso e ir por aí com segurança: «… Depois disto, não se fará melhor». Ou então, realçar uma certa renúncia que está implícita (e é bem cara a Cioran) e contrapor, com alguma malícia, uma expressão do tipo: «… Depois disto, mais vale arrumar as botas».  Mas, na verdade, continuo a pensar na escada e também (e acima de tudo) no gesto de a deitar fora  ( com extrema secura ): «... Depois disto, deitar fora a escada».
Cheguei ao fim de 1971, só falta um ano para o fim, trinta e tal páginas.  31 dez. 1971 Esta noite, pesadelo grandioso, desproporcional, vertiginoso.  Acordei a chamar pela minha mãe...  Quanto a dizer em que consistiu esse pesadelo, sinto-me incapaz.  1º Janeiro de 1972  Tristeza constante que me parece inútil analisar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Um recadinho amoroso

Conheci escritores obtusos e até mesmo estúpidos; todos os tradutores que conheci eram, sem excepção, inteligentes e muitas vezes mais interessantes do que os autores que traduziam. (Há mais reflexão na tradução do que na «criação».) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (outubro de 1971)

Fugir do verão como da peste

Devia reconsiderar o «problema» do suicídio: parece que negligenciei os seus aspectos mais interessantes. Podia considerá-los agora, pois notei que é de preferência no verão que me sinto disposto a abordar uma questão destas. Será o calor? Será a luz? O sol sempre me incitou a repensar este mundo e despertou em mim crises de melancolia às vezes insuportáveis. As minhas «trevas» impedem-me de me pôr em uníssono com o esplendor envolvente; do choque entre o que sinto e o que vejo nasce este estado de humor negro e tudo o que daí advém.  O verão é a estação das grandes impossibilidades. O sol é um fornecedor de ideias negras . Nada convida tanto à melancolia como uma paisagem devastada pela luz. Fugir do verão como da peste. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

Às portas da Ásia?

O acaso pregou-me outra partida: em poucas semanas, Danúbio é o terceiro livro que fala de Cioran. Na página 314, lá surge a referência ao filósofo romeno — quase imperceptível, quase piscadela de olho. Como tudo que Magris escreve, é inteligência musical.  «Esta paisagem magiar, forte e ao mesmo tempo indolente, seria já o Oriente, memória ainda fresca das estepes asiáticas, dos Huinos e Pechenegues ou do Crescente; Cioran celebra a bacia danubiana enquanto amálgama de povos vitais e obscuros, ignorantes da História, ou seja, das periodizações ideológicas inventadas pela historiografia ocidental, seio e linfa de civilização ainda não desvitalizada, aos seus olhos, pelo nacionalismo ou pelo progresso.»

Jornada

Um Papa que perdia a fé e abandonava o Vaticano depois de uma declaração pública de ateísmo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

«A vida é um estado de ambição»

Trouxe Areias Brancas da Biblioteca. É o primeiro livro de Geoff Dyer que leio e encontrei-o por acaso. Na página 190, por duplo acaso: outra citação de Cioran*. No póquer, um par é apenas a oitava melhor mão possível. No resto, desconfio que ainda é menos. «E. M. Cioran diz que a toupeira cegamente escavando o seu túnel é ambiciosa, que «a vida é um estado de ambição », mas que, na compreensão habitual, a ambição tem sempre um objectivo qualquer para lá das satisfações que a tarefa proporciona: aclamação, reconhecimento, fama, dinheiro.» * A tradução do que não está entre aspas não é grande coisa; no original de Cioran e na versão francesa de Dyer não há gerúndio (é no que dá traduzir a partir do inglês). O advérbio é invenção de Dyer e, mais do que mudar o verbo, creio que se trata de uma  interpretação subtil — se fosse «às cegas» em vez de «cegamente», nem tinha notado.  A citação não existe no texto original publicado pela Harper's em abril de 2016.

A dúvida como mecanismo de condução

Estabelecer uma relação entre Alicia e Cioran é uma ideia estúpida, mas bastante divertida. Acabei por descobrir (na verdade foi Alicia que descobriu) que a família dos Western (da parte da mãe) era originária da Roménia e, durante um certo tempo, Alicia teve o devaneio de fugir para lá (como se a Roménia fosse a floresta por excelência) com o irmão para viver um amor fora da lei. Claro que isso vale vários pontos na minha investigação falhada, mais até do que o suicídio que é penalizado por ser demasiado óbvio. Depois há muitas coisas que Alicia diz ao psiquiatra e ao Puto — mas não tirei notas, por isso fico-me por esta citação, já d’ O Passageiro (página 319), que podia ser um recadinho amoroso para o filósofo. E já chega disto. «(...) A ideia está sempre a lutar contra a própria concretização. As ideias surgem dotadas de um cepticismo inato, não aparecem e levam tudo à frente. E estas dúvidas têm a sua origem no mesmo mundo que gerou a própria ideia. E isto é uma coisa a que, na

Saltarinheiro

14 de outubro (1970) A. A. envia-me o Diário de Vlasiu onde se fala muito de mim tal como era em 1938-39.  Esse eu de que Vlasiu fala, por mais que tente, não o consigo reconhecer: escapa-me, tem a consistência de um espectro. É verdade que não se percebe lá muito bem como é que nos podemos reconhecer quando somos evocados por um saltarinheiro, por um escroque ao mesmo tempo bilioso e cheio de encanto, um labrego manhoso e cabotino como não há outro.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972   Traduzir os Cadernos  obriga-me, constantemente, a procurar uma data de insultos em português. Não são uns insultos quaisquer, têm de ser potentes e encantores ao mesmo tempo (mais ou menos:  pulverizar, mas com dedicação ).  Para além da alegria que me dá no momento, fico preparada para eventuais reclamações, guerrilhas e discussões. E também deve dar pontos no curriculum vitae .

Consolidação do inferno

É bastante irónico que nos aproximemos tanto e tão depressa de uma versão rasca do inferno feita de calor e fogos. A realidade assemelha-se às imagens infantis dos folhetos que as testemunhas de Jeová nos oferecem na rua como se fossem rebuçados. Talvez a ideia de Cioran de um Deus trocista — um Criador que se risse da Criação — se tenha materializado.

Vencidos da vida

Ataque de fúria, mais uma vez. Será possível deixar passar os dias como eu faço? Há meses que não escrevo nada, nada, nada, nada! Irrito-me como uma puta sem clientes, barafusto contra tudo e amaldiçoo-me! Ou então consolo-me pela minha esterilidade e pelos meus fracassos, entregando-me a essa voluptuosidade de saber que já não existo para ninguém. Como se tivesse existido! Invento este esquecimento que, falso ou real, me dá uma amargura apaziguadora. Não existir mais para ninguém! Mas toda a gente, cedo ou tarde chega lá, inevitavelmente. É a grande consolação dos vencidos.  Uma miséria da qual não consegui livrar-me: a doçura da autocomiseração.  Esta manhã reflecti de novo nas possibilidades que o suicídio oferece. E depressa superei o meu acesso de fúria.  Devíamos gravar no frontispício das câmaras municipais e das igrejas: Todos nós somos vencidos .  É mais fácil viver com esta divisa do que com falsos boletins de vitória. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972