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Uma vida sem achaques

Nas páginas 482 e 483 de Danúbio, Magris zurze em Cioran de uma forma tão violenta que tive de ler três vezes os parágrafos para conseguir registar a informação. É das coisas mais tristes que há, começar a gostar de um escritor que desanca assim em alguém que admiramos. Parece uma traição, mas contra a qual nem sequer me posso enfurecer porque não é directa, quer dizer, só existe se me meter entre os dois, fora isso é um ataque vulgar. Magris fala de Cioran como um tipo que forjou uns pensamentos de escapatória, uma negação absoluta que não passa de um expediente cómodo para resolver todos os problemas no conforto da sua mansarda em Paris. Soa tudo tão vil e afastado da minha perspectiva que não consigo nem perceber nem, muito menos, aceitar. E o que é mais estranho é que nas páginas dedicadas à Panónia, aos bogomilos, ao que é ser magiar, reconheci tantas coisas que leio nas pequenas anotações de Cioran.
 
Entretanto, talvez para me poupar a penosos exercícios intelectuais, o corpo arranjou uma escapatória e fiquei tremendamente enjoada, e isso até acabou por me orientar para uma explicação do foro clínico: talvez Magris seja um homem demasiado saudável para entender Cioran, talvez o seu ataque revele apenas a falta de paciência para doenças que é comum a quem leva uma vida sem achaques.

Comentários

Luis Eme disse…
Talvez Magris tivesse um daqueles espelhos que hoje são usados por tanta gente, com aquela música: "És tão bom! És tão bom! És tão bom!"
c disse…
Não faço ideia se ele é vaidosão, nem quero saber, estou apenas a brincar.

Era o que faltava, termos de gostar todos das mesmas coisas, pessoas, etc. Seria um mundo muito aborrecido, não achas?
jose disse…
Tenho o guia há anos. Leitura parada. Apresentado como roteiro cultural eu esperava alguma densidade especulativa.Mas desde o começo pressenti uma pressa que a viagem é longa,despejar o que sabe em cada lugar assinalado. Arrumei para mais tarde e mais fé.Não cheguei ao "seu" Cioran. Teria Magris contas a ajustar como escreveu,velando assim algum pilhanço? Verei se lá chegar.
Mas permita-me,também a Cristina simplificou a "razão" de Magris.A de possuir ele um canastro avesso a indícios de doenças. Infelizmente arrasto-as e também
me não motivam os relatos de companheiros de infortúnio.Apenas sob a máscara da ironia,mesmo sarcasmo.A Natureza não merece mais às tais horas.
c disse…
Cioran só aparece perto do fim.

Sim, tem razão simplifiquei, não é por ter ou não doenças que se gosta de Cioran, se assim fosse não teria paciência para ele, sou demasiado saudável, apenas partilho com ele noites em branco.

Creio que Magris tem uma ideia um bocado preconcebida e pouco profunda do romeno. Mas tem direito a pensar o que quiser. É como na Regra do Jogo, quando Renoir diz «O que é terrível é que todos têm as suas razões.»
jose disse…
Também considerei a sua explicação,acrescentando a minha.Aproveito para celebrar a sua saúde,nem imagina,talvez,o contrário.Talvez,é possivel recolher dados,e que dados,à nossa volta.Aproveite.Dê graças,a si,à recombinação genética,à sorte imperscrutável.
Não penso retomar o guia Magris,tenho clássicos para ler,reler à espera desde a Antiguidade.
A aflição da diferença é o que (re)constrói o mundo.Abismo e maravilha.À vez.
c disse…
Imagino. Há acidentes que passam a perna às outras sortes. Estive três semanas no hospital com 50% de hipóteses de sair ou não (soube depois).

O Magris tem passagens muito boas.
jose disse…
Se o recomenda talvez lá volte.
Grato por tudo.
jose