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22 de novembro (1968)

Esta manhã, por volta das 3h, do Colégio Militar ao Odeon, meti por ruelas completamente solitárias. Nem vivalma. Frio. E ocorreu-me a ideia de que caminhava por uma cidade onde todos os vivos tinham sido exterminados instantaneamente (guerra bacteriológica?). Nenhuma angústia nem satisfação.  E pensei que nos adaptamos depressa à condição de sobrevivente. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

22 de maio (1970)

Com a minha cobradora de impostos. Uma senhora de olhar frio, quase malicioso. Acha que não ganho o suficiente, ou melhor, que não declarei o suficiente.  — Está bem vestido. O seu fato é novo.  — São os amigos que me vestem.  — E para comer?  — Tenho a vantagem de ter uma gastrite. Estou de dieta. Nunca vou a restaurantes. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

O mar a agitar-se na tela

De repente, lembro-me do primeiro filme que vi (em 1919?) em Sibiu, no cinema «Appollo». Se não me engano, o filme chamava-se A Dama do Mar ( Doamna Mării ) (??) Recordo-me da perturbação que senti ao ver o mar a agitar-se na tela. Essa sensação, nunca a devia ter esquecido; e, no entanto, só me ocorreu hoje, quarenta e cinco anos depois! Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (fevereiro de 1966)

A política do falso caracol

Expliquei hoje a Piotr Rawicz que a minha política é a do caracol: esconder-me, retirar-me, sair apenas ocasionalmente. Ele respondeu-me que não é assim tão simples, que apesar de tudo somos solicitados pelo mundo. Concordei. «Sou um  falso caracol», disse-lhe.   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (julho de 1967)

Mulheres doentes

Os meus «escritos» só tiveram algum sucesso junto das mulheres, de umas quantas, muito raras. Encontro a explicação para isso na sentença tão justa de Hipócrates: «A mulher é a doença.»  Uma pessoa saudável não pode interessar-se pelo que faço.     Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (setembro de 1964)

Livros do Desassossego

Só se deve escrever e sobretudo publicar coisas que fazem mal, quer dizer, que não conseguimos esquecer. Um livro deve remexer feridas ou até mesmo provocá-las. Deve estar na origem de um desassossego  fecundo ; mas acima de tudo um livro deve constituir um perigo . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 
Sonatas para Violino de Bach.  Temos de nos emancipar, não só na música, mas também na filosofia, e em tudo, da orquestra . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Uma mulher em Veneza

Gosto tanto da fotografia escolhida para a contracapa d' Uma família em Bruxelas . Foi tirada em 1982, no Festival de Cinema de Veneza (baralhei-me com outra de Cannes, de outra pessoa), por Raymond Depardon.  Parece uma imagem convencional a preto e branco, com linhas certas e pose estudada. E ao princípio é isso, mas depois não sei explicar porquê, esqueço-me da praia e das barracas e já só vejo aquele corpo tenso, uma mão no bolso, a outra com o cigarro, os olhos desconfiados. Desconfiança de quê? Da praia? Do Festival? Do cinema? Da vida? E essa desconfiança não pára de aumentar, e já passou para mim, como se houvesse um diálogo ou uma ligação qualquer e quase que dá para sentir o mistério daquela mulher, e — deve ser esse o milagre das imagens — por um breve momento, oh, muito breve, Chantal está toda aqui .

Maio de 68

O que acho bonito é que durante os acontecimentos de Maio, os estudantes não recorreram a Gide, nem a Valéry, nem a Claudel, mas a Artaud , que era pouco conhecido e certamente desprezado por essas três estrelas. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (junho 1968)

Aquilo que ainda sobra

Cioran passa o tempo a ler. Tento seguir as referências que surgem nos Cadernos mas, como não tenho a vida dele, não o consigo acompanhar. Noutro dia vi Tonio Kröger na Biblioteca e lembrei-me desta anotação: «Tudo o que sou, o pouco que valho, devo à extrema timidez da minha adolescência. O meu lado Tonio Kröger .»  O livro é muito trabalhado, quase que se ouve a cabeça de Thomas Mann a escolher as palavras, a balançá-las — tudo isso. Apesar de alicerces extremamente sólidos, é divertido. Por exemplo tem dois punctums muito estimulantes: a flor campestre na lapela do pai de Tonio ou o cigano num carro verde que só vemos dentro da cabeça de Tonio, talvez por ele próprio ser escritor; a cena com o polícia que o toma por um ladrão em fuga para a Dinamarca e que começa com tons de Kafka e acaba como uma comédia portuguesa dos anos 30 ou 40 com a palavra provas a fazer ricochete também é muito cómica; ou até mesmo a conversa instrutiva no atelier de Lisaveta Ivanovna — bom, era aqui
Não há riso no Cristianismo.  Só poderia aderir a uma religião em que o Criador se risse da Criação — um Deus trocista.  Seria tudo muito mais fácil se aceitássemos um Deus trocista. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (junho 1968)

Beckett

Alguns encontros  Para decifrar esse homem distinto que é Beckett, temos de insistir na locução «manter-se à parte», divisa tácita de cada um dos seus momentos, no que implica de solidão e obstinação subterrânea, na essência de um ser afastado, que persegue um trabalho implacável e sem fim. No budismo, diz-se que aquele que tende para a iluminação deve ser tão encarniçado como «o rato que rói um caixão». Todo o escritor verdadeiro desenvolve um esforço semelhante. É um destruidor que acrescenta à existência, que a enriquece ao miná-la.  «O tempo que passamos na terra não é suficientemente longo para o usarmos noutra coisa a não ser em nós mesmos.» Esta afirmação de um poeta aplica-se a quem recusa o extrínseco, o acidental, o outro . Beckett ou a arte inigualável de ser quem é. Com isso, nenhum orgulho aparente, nenhum estigma inerente à consciência de ser único: se a palavra amenidade não existisse, teríamos que a inventar para ele. Coisa difícil de acreditar, até monstruosa: ele n

Lagom

«… o único segredo da felicidade é renunciar a tudo.» (Cristina da Suécia)  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (escrito em maio de 1968) Volto aos Cadernos de Cioran como quem volta a casa ou, pelo menos, a um lugar conhecido mas estranho ao mesmo tempo. Se ele soubesse deste (nem sei bem que palavra escolher, talvez enlevo com sotaque açoriano a meio do atlântico?) pois sim, enlevo ou alegria, era capaz de ficar um bocado chateado e um bocado vaidoso. Estou em junho de 1968 — temos praticamente a mesma idade.

Felicidade de raivoso

O amor é um sentimento bastante anormal, pois é acompanhado por todos os estados confusos que normalmente caracterizam uma mente perturbada: angústia, desespero, desconfiança mórbida, lampejos de felicidade, egoísmo levado à ferocidade etc. É uma felicidade de raivoso. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Píca-ro

Em vez de escrever, digo mal de todos os que escrevem. Um falhado é isto. Lembro-me daquele pintor, numa aldeia de Perche, que borrava as paredes dos restaurantes (paisagens horríveis com um lago, etc.) e dizia mal de todos os seus colegas, a começar por Picasso a quem chamava «Píca-ro»! O azedume só é aceitável ao nível especulativo, no estado de pura abstração: fel decantado . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 É muito raro, mas às vezes as traduções correm tremendamente bem: precisamos de uma palavra que encaixe (é disso que se trata: encaixar as palavras nos sítios certos, agradar à semântica e à fonética, fazer tudo com justeza e sem nos estatelarmos no chão) e encontrámos uma que se ajusta como na língua original. Neste caso foi “Píca-ro” lançado contra Picasso. Se estivesse na Graciosa, atirava uns foguetes ao ar.

Cem cigarros

Disseram-me que a minha irmã fumava cem cigarros por dia! Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (escrito em maio de 1967, seis meses depois da morte da sua irmã Virginia)

Avançar para um maior grau de insegurança

Não me cabe a mim, querido amigo, emitir um juízo sobre um livro do qual sou objecto. Saiba, porém, que a sua tentativa de captar desde o interior a minha maneira de ver as coisas iluminou-me sobre numerosos detalhes, sobre numerosas ilusões surgidas do arrebatamento ou da negação e, deste modo, tornou-me um pouco mais exterior, um pouco mais estranho a mim mesmo, o que devia ser a ambição de quem se compromete nesta aventura de espectador que é o conhecimento de si mesmo. Tem razão ao deixar de lado as «influências». Sofri muitas porque, não tendo praticado nenhum ofício, pude, ao longo dos anos, ler um número considerável de autores. Quais citar? Todos aqueles — e são uma legião — que, de Theognis a Beckett, formularam as suas reservas à legitimidade da existência.  Não foram, no entanto, as leituras que me formaram, mas os acidentes e os encontros. Tudo o que descrevi é fruto de circunstâncias, de acasos, de conversas, de ruminações nocturnas, de crises de desânimo mais ou menos quo

Armado de escrúpulos

Se alguma vez um mortal foi atormentado, supliciado pelas dúvidas sobre si mesmo, esse mortal sou eu. Em tudo. Quando entrego um texto a uma revista, a minha primeira ideia é reavê-lo, retocá-lo e, sobretudo, abandoná-lo. Não confio em nada do que faço e penso. E se tenho uma certeza, é da desconfiança de mim mesmo — o que põe em causa não só as minhas capacidades, mas também os fundamentos e a razão do meu ser. Estou literalmente armado de escrúpulos. Como é que pude, nestas condições, empreender seja o que for e, com tantas perplexidades, decidir-me pelo menor acto, pelo menor pensamento? Emil Cioran, Cadernos 1957-1972