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Avançar para um maior grau de insegurança

Não me cabe a mim, querido amigo, emitir um juízo sobre um livro do qual sou objecto. Saiba, porém, que a sua tentativa de captar desde o interior a minha maneira de ver as coisas iluminou-me sobre numerosos detalhes, sobre numerosas ilusões surgidas do arrebatamento ou da negação e, deste modo, tornou-me um pouco mais exterior, um pouco mais estranho a mim mesmo, o que devia ser a ambição de quem se compromete nesta aventura de espectador que é o conhecimento de si mesmo. Tem razão ao deixar de lado as «influências». Sofri muitas porque, não tendo praticado nenhum ofício, pude, ao longo dos anos, ler um número considerável de autores. Quais citar? Todos aqueles — e são uma legião — que, de Theognis a Beckett, formularam as suas reservas à legitimidade da existência. 

Não foram, no entanto, as leituras que me formaram, mas os acidentes e os encontros. Tudo o que descrevi é fruto de circunstâncias, de acasos, de conversas, de ruminações nocturnas, de crises de desânimo mais ou menos quotidianas, de obsessões intoleráveis. O meu estado de saúde, afortunadamente mau, é em grande parte responsável pela direcção, pela cor, dos meus pensamentos. Comecei a ser «eu» graças às insónias, essa catástrofe à qual devo tudo e que marcou tão profundamente a minha juventude. Se percebi certas coisas neste mundo, é porque tive a sorte de não conseguir dormir... 

E, nisso tudo, que há de filosofia? Pediu-me para lhe dizer sucintamente qual é a minha concepção exacta de filosofia. É muito evidente que não sou filósofo, mas é justo dizer que o meu despertar de consciência coincidiu com o culto fanático da filosofia. Quando era estudante, não lia senão filósofos e não acreditava senão em sistemas. Depois, tudo o que pude experimentar ou pensar não foi mais do que uma luta contra todas as formas de sistema, em qualquer domínio. Podia ter posto como subtítulo da sua tese: Do anti-sistema

Chegamos a um ponto da história em que é necessário, creio, ampliar a noção de filosofia. Quem é filósofo? O primeiro que chegue roído por interrogações essenciais e feliz por ser atormentado por um flagelo tão notável. Vou citar um exemplo ou, se preferir, um caso. Durante anos recebi a visita de um mendigo que vinha fazer-me perguntas sobre Deus, sobre a matéria, sobre o mal, etc., às quais, é claro, eu não podia responder. Levava essas perguntas com ele, dava-lhes voltas em todos os sentidos, confundia-se com elas. Não conheci ninguém mais apanhado, mais afectado pelo insolúvel e pelo inextricável. Um dia, num momento de desânimo, confessou-me que merecia a sua condição, era apenas um mendigo e nada mais, e tanto o seu modo de existência como as suas obsessões pareciam-lhe igualmente desprezíveis. Para lhe levantar o ânimo, disse-lhe de imediato: «Sabes, para mim és o maior filósofo de Paris, neste momento». Fitou-me atónito e pensou que o estava a gozar. Mas nas minhas palavras havia um tom de sinceridade que não lhe escapou e que deve tê-lo impressionado. Depois, as suas visitas foram espaçando-se até cessarem por completo. Ainda vive? Morreu? Não sei. A vantagem de não ter domicílio é poder desaparecer sem deixar rasto. Tal é o privilégio do mendigo. Na verdade, esse homem é, ou era, um filósofo. E talvez também eu o seja um pouco na medida em que, graças aos meus achaques, sempre me empenhei em avançar para um maior grau de insegurança. 

Emil Cioran 
Paris, 22 de outubro de 1973. 
(Carta-Prefácio a Ensaio sobre Cioran, de Fernando Savater.)

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