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Mensagens

Cansei dessa história

Em 1990, cansada de ser uma autora elogiada pela crítica mas ignorada pelo grande público, [Hilda Hilst] resolve dar um novo rumo à sua obra. «Quero ser famosa, cansei dessa história de prestígio», declarou à imprensa, anunciando que decidira escrever romances «pornográficos». Jorge Lima Alves, prefácio a Obscénica , de Hilda Hilst.
Capa de Edward Gorey.

A senhora, finalmente, conseguiu ler tudo

James Supravielle de Vasconcelos, escritor, estava, claro, a escrever. Um livro. Sobre a mãe. Cada página que escrevia passava-a à mãe que a lia com muito gosto. Volta e meia, dizia ela: - Estou morta por ver este livro em letra de forma, para o ler como deve ser. O livro foi, finalmente, publicado. O escritor levou à mãe a obrinha, um esmero. - Filho, como queres que leia este calhamaço? São 400 páginas, e eu tenho 75 anos. James Supravielle de Vasconcelos ficou desconsolado. Mas não por muito tempo. Lançou-se ao trabalho e conseguiu reduzir o calhamaço a umas ainda assim imponentes 150 páginas, que publicou. A mãe começou a ler o resumo. Por pouco tempo: um dia depois, queixava-se:  - Filho, já não tenho idade para tanta literatura, estou com 78 anos. Fiquei cansadíssima só com o prefácio. Faz lá outro resumo.  E ele assim fez. Finalmente, tinha dez páginas condensadíssimas. Feita a respectiva plaquete, levou-a à mãe, no dia do seu octogésimo aniversário. A senhora, finalmente, con

LOL

In a 1950 paper called “Does Writer’s Block Exist?,” published in American Imago , a journal founded by Freud in 1939, [Edmund] Ergler argued that a writer is like a psychoanalyst. He “unconsciously tries to solve his inner problems via the sublimatory medium of writing.” A blocked writer is actually blocked psychologically - and the way to “unblock” that writer is through therapy. Solve the personal psychological problem and you remove the blockage. Maria Konnikova.
Umberto Boccioni, The Laugh , 1911.

Não me desarrumes o jardim

A certa altura, entre Berlim e Dresden, Jorge, que no último quarto de hora tinha vindo a olhar atentamente pela portinhola, disse: - Porque é que na Alemanha se põem as caixas de correio em cima das árvores? Porque é que não as põem à porta como nós fazemos? Acho detestável termos de trepar a uma árvore para irmos buscar correspondência. (...) Segui-lhe o olhar para fora da carruagem e disse-lhe: - Aquilo não são caixas de correio, são ninhos de pássaros. É preciso compreender este país. Os alemães gostam muito de pássaros, mas de pássaros asseados. Um pássaro abandonado a si próprio faz o ninho onde lhe apetece. O ninho sob o ponto de vista alemão, não é coisa muito bonita, não tem vestígios de pintura, nem de decoração, nem mesmo tem uma bandeira. Construído o ninho, o pássaro passa a viver fora dele. Deixa cair na erva vimes, bocadinhos de vermes, toda a sorte de porcarias. É pouco delicado. Ama, discute com a fêmea, e dá de comer aos filhos em público. O alemão, todo caseiro,

O turismo na nossa cidade

A história de Patrice Crozier começa exactamente como a de Gaspard Loorens, mas termina menos bem. Na madrugada de 23 de Outubro de 1976, Patrice foi barbaramente assassinado em casa. As investigações, feitas logo na manhã do dia seguinte, parecem indicar que se tratou de um crime premeditado. Eis as provas mais relevantes que constam do relatório policial: Prova a) cinzas ainda quentes na lareira; Prova b) um vaso cheio de flores artificiais sobre a mesa da sala; Prova c) um tapete vermelho estendido no chão do quarto; Prova f) dois quadros na parede do corredor, o primeiro dos quais representando uma cena campestre (um fauno entre as árvores observa uma ceifeira de saia levantada, que apanha erva com a foice) e o segundo, um bêbado a satisfazer uma necessidade no meio da rua; Prova h) uma fenda em “S” que percorre de alto a baixo a parede da cozinha; Prova n) tectos brancos, paredes pintadas a azul claro, soalho em ziguezague lacado a preto; Prova r) o telefone pousado no des

Textos psicopáticos

[Javier] Tomeo frecuentaba entonces, empezando por la mañana, un circuito de bares alrededor de las Ramblas y la Plaza Cataluña - el Moka, la Granja Royal, el Zodiac, el Lugano - que conformaban lo que él bautizó como “el polígono mágico”. Y no fallaba: en algún momento del trayecto, Tomeo, con mayor o menor esfuerzo, conseguía acorralar a alguien de la pandilla, sacaba las cuartillas del bolsillo y le leía sus “textos psicopáticos”, muchos de los cuales aparecieron años después en el volumen titulado Historias mínimas . Puro Tomeo ya, escueto, inquietante, esencial. Bravo. Jorge Herralde, Nota del edito r, in Javier Tomeo, Historias minimas (ed. Anagrama).  Próximo sábado, 5 de Março pelas 17h00. Entrada livre.

Próximo sábado, 5 de Março, 17h00, no Gato Vadio.

Imagem de Luís Nobre, dos Lina&Nando .

Plano

Começa sempre pelo princípio. Pega numa caneta e numa folha de papel. O que tens vestido? Muito bem, escreve. Acrescenta mais uma camisola, um par de meias, luvas. O que tens calçado? Botas, sapatos, chinelas de quarto? Escreve. Onde estavas há uma hora? No autocarro, na rua, em casa, na cama? Escreve. De que precisas agora? Tabaco, vinho, café? Escreve. Um saca-rolhas? Escreve. O rádio ligado? Escreve. Escreve tudo até ao fim. Não deixes nada por dizer, escreve até esgotares as coisas que te rodeiam, os fantasmas, a imaginação. De seguida, lê com cuidado o que escreveste para teres a certeza de que não falta nada. Depois volta a verificar e corta tudo o que pode ser dispensável. Depois, risca tudo. Depois, queima o papel. É este o plano que deves seguir sempre.
Dedicatória de Três ingleses no estrangeiro , de Jerome K. Jerome.

Indicações de cena

O Conde de Eu e Visconde de Qualquer Coisa entra pelo fundo (as pernas um pouco arqueadas), fecha o guarda-chuva e coloca-o a um canto. Depois, senta-se, tira os sapatos de borracha, atira-os para debaixo do sofá, desenrola o cache-nez e desdobra a bainha da calça. Arrota e esfrega o nariz. Arrota outra vez e adormece. Talvez para sempre.

Paciência, Sísifo!

Sísifo empurrava um enorme porco ladeira acima. O porco grunhia e tentava por todos os meios escapar a Sísifo. Este segurava e empurrava o animal, empenhando nisso todas as suas forças. Assim que chegava ao topo, uma mão invisível libertava o porco, que corria, grunhindo de alívio, ladeira abaixo. Sísifo descia, capturava o animal e recomeçava o trabalho, uma e outra vez, por toda a eternidade. Paciência, Sísifo!

Nem o autor saberia dizer muito bem qual a sua “intenção”

Antigamente, traduzir era, cientificamente, “impossível” (apesar de haver tradução desde sempre…), já que não temos acesso à “intenção do autor” e que existem termos “intraduzíveis” de umas culturas ou outras; o tradutor era um “traidor”, por mais que tentasse ser “fiel” à obra, e esta era sempre “perfeita”, enquanto que a tradução, “diferente”, sempre “inferior”, sempre fadada ao fracasso, sempre destinada a “perder” coisas aqui e ali. Hoje em dia, em grande parte graças aos desconstrutivistas, sabemos (ou ao menos, rosianamente, desconfiamos) que, de qualquer forma, nem o autor saberia dizer muito bem qual a sua “intenção” (lembro de uma anedota do escritor que foi resolver questões de vestibular sobre seu próprio livro e foi reprovado…), que existem termos “intraduzíveis” que são perfeitamente explicáveis, que as obras não são algo fixo, rijo e uno, e que, portanto, tendo em vista a pluralidade de pontos de vista possíveis e a historicidade de que estão impregnados tanto os autores
Leonid Pasternak (1862-1945)

Variações sobre o mesmo tema

Dois homens entram num bar. Grillparzer e Hebbel entram num bar. Um ser de ferro e uma serpente entram num bar. La Fontaine e uma doninha entram, de rompante, num bar. Um pavão e as ruínas do Castelo de Heidelberg entram num bar. Um autor famoso e um autor de que ninguém fala entram num bar. Um romance de Dostoiévski e uma tragédia grega entram num bar. Uma nuvem e um cavaleiro montado no seu garboso cavalo entram num bar. O orgulho sereno de Gluck e a bondade de coração de Haydn entram num bar. A rigidez e a insociabilidade nórdico-protestantes entram, de braço dado, num bar. Uma obra de arte e o sentido profundo da língua entram, completamente ébrios, num bar.

Uma volta à cadeira

Na região de Chao-chou, uma velha mulher enviou ao mestre um donativo pedindo-lhe que recitasse toda a colecção de sutras budistas. Ao ouvir o pedido, o mestre levantou-se e deu uma volta à cadeira. Depois disse: “Acabo de recitar toda a colecção de sutras”. Quando o mensageiro regressou e transmitiu à mulher a resposta de Chao-chou, ela perguntou: Pedi a Chao-chou que recitasse toda a colecção de sutras. Por que motivo ele não recitou senão metade? Koan incluído no ensaio Koans in the Dogen tradition: How and why Dogen does what he does with Koans , de Steve Heine. Tradução de Rosa Maria Martelo.