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Mensagens

Os espaços com as mercadorias eram cada vez maiores e mais bonitos, meticulosamente limpos, contrastando com o abandono do metrô e das escolas públicas. Um ano inteiro não bastaria para experimentar todos os tipos de iogurtes Annie Ernaux | revista piauí | Fotografia de Andreas Gursky 

Batatinhas salteadas (esclarecimento)

Alguém pesquisou “batatinhas salteadas alvaro de campos” no bing e veio dar ao bicho ruim. Já aconteceu algumas vezes esta semana, por isso é melhor esclarecer o assunto. Ora bem, que eu saiba, há uma cena do engenheiro com dobrada à moda do porto servida fria ; batatinhas, acho que não. Mas podemos explicar a existência de batatinhas salteadas no blogue. Para começar, convém dizer que na origem, na língua alemã/vertente suíça, é rösti. A meio de uma representação, o actor que interpreta Helmer vê-se tomado de desejos de rösti e, seguindo uma ânsia sem travões, dá cabo dos valores morais de Ibsen. Walser é perito nestas tropelias existenciais. A tradutora podia ter retirado a trema (agora toda a comida é global); ou optado por tortilha que é semelhante ao rösti e tão comum que até se vende no supermercado. Resolveu saltear as batatas e, esse é o grande trunfo, reduzi-las a batatinhas. Leopoldina Almeida criou assim uma expressão em português que vai muito além da gastronomia e rev

A história como pesadelo

- History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake. Lembrei-me do comentário de Stephen Dedalus, no  Ulisses , a propósito do texto de Jorge Almeida Fernandes, no Público de ontem: Jaroslaw Kaczynski concebe a política como “guerra civil permanente”. Regressado ao poder, relançou a guerra ideológica de 2005-2007, elegendo a História como campo de batalha. A Polónia tem uma história trágica. E o PiS sabe usá-la. A História serve para “fazer a guerra” e nomear inimigos, presentes e passados. Serve também para fornecer uma legitimação ao regime e para neutralizar a oposição. “A História é a nova religião”, diz ao Politico.eu um deputado conservador. A “Polónia heróica” é inseparável da “Polónia mártir” e deve ser uma “Polónia sem mácula”. Por isso se impõe reescrever a História.

Observações avulsas sobre a boavista #3

Hoje a avenida da Boavista parecia um jogo electrónico antigo cheio de pistas esquisitas. Não sei se é influência do Leão de Belfort, se é deste calor exagerado, se é de acordar demasiado cedo. Logo no início, uma t-shirt branca com uma espécie de labirinto estampado na frente enfiada numa cruzeta pendurada na porta do restaurante vegetariano (acho que era o meu número); mais adiante, um pássaro cansado; junto ao bingo, um cartaz publicitário de um banco encravado a meio com esta frase à altura dos meus olhos: “nunca deixe de procurar”. Procurar o quê? Precisava de um dicionário de pistas, mas um livro desses, tão perigoso, deve estar escondido num túmulo no oriente e o Indiana Jones já está velho para resgates. Ou então; talvez seja necessário outro o género de herói? Talvez precise daqueles calhamaços que ligam uns para os outros e Groucho Marx vende nas corridas de cavalos como se fossem gelados. Ou então, pelo menos, um gelado. Isso deve servir.

Na esplanada do Aduela

Manhã de sábado cheia de sol. Decidimos caminhar até à Baixa e ler numa esplanada. Escolhemos uma mesa debaixo da oliveira, na esplanada do Aduela. A oliveira está a rebentar de pequenas flores de um amarelo esverdeado. Milhões de flores minúsculas que tombam a cada sopro de ar. O cabelo e a roupa cobrem-se de flores. Algumas caem sobre as páginas do livro. Escondem letras, sílabas, transformam-se em misteriosos sinais de pontuação. Sacudo-as uma e outra vez para prosseguir a leitura. Depois, desisto. A oliveira insiste em usar as páginas do meu livro para escrever a sua própria história. E que espécie de leitor se negaria a ler a secreta história da oliveira?

Mas, na manhã seguinte

(Depois dos espargos, do folar de azeitonas, do salmão fumado e do vinho do Douro — fórmula petisco improvisado — não me apeteceu trabalhar. Sentei-me na varanda a aproveitar o sol e a ler mais umas páginas d’ O Leão de Belfort e agora já sei demasiado, pelo que vai ser difícil defender a crítica a uma obra baseada apenas num parágrafo. Vou tentar não fugir do risco. Dentro do possível.) A questão geográfica. No excerto referido é apenas o parêntesis (ou seja, a Paris), a Rue Lemercier e o bairro de Batignolles, mas isso basta para prevermos (o plural define os leitores habituais do Alexandre Andrade) deambulações várias pela cidade, viagens de metro e autocarro. E, num salto completamente bem executado, a geografia mistura-se com a arquitectura, e entramos nas casas quase sempre pequenas e alugadas, nos quartos, nos corredores e escadas. É uma espécie de guia, mas ao contrário, em que o objectivo principal (a esperança, diria até) é desviar-nos do caminho certo. Ou, pelo menos, enc

Agora sim, Facilidades e Amenidades

Há regras para fazer crítica literária. Uma delas obriga a que se leia a obra antes de se proceder à análise (nos casos mais violentos pode dizer-se autópsia?) Outra (não sei se esta tem estatuto de regra ou é apenas um conselho) estabelece que não se deve tomar a parte pelo todo e vice-versa. Acima de tudo convém evitar amiguismos. Pois o que me proponho fazer não é nada disso. Apanhei o “Leão de Belford” na biblioteca e, enquanto esperava pelo 200 para o Bolhão, comecei a ler e logo nas primeiras páginas, no singular diálogo entre Georges e Sidonie, percebi tudo, quer dizer, percebi porque é que gosto desta noveleta urbana em particular e da escrita do Alexandre Andrade em geral. (Se isto fosse uma cena tipo ted talk, a imagem do leão projectada atrás de mim abria a boca, rugia e era substituída, após um corte abrupto, pela transcrição do segundo parágrafo em letras luminosas. Sons de rua distantes.) Primeira e única prova a apresentar: segundo parágrafo da obra já referida, ne

Facilidades e Amenidades

Gosto de despojar os objectos de ostentações. É mais ou menos o contrário da publicidade ou da arte contemporânea mais empreendedora (ver Joana Vasconcelos nos dois casos): restituir vulgaridade às coisas, deitar por terra o prestígio acumulado (vale a pena investigar os antecedentes latinos da palavra  prestígio). É por isso que, entre outros gestos, prefiro comprar flores imperfeitas na rua ou na drogaria da avenida de França e a revista Electra na tabacaria da Fonte da Moura. Ontem caprichei no desempenho do exercício. À tarde, quando fui para casa, meti a revista de papéis finos no saco junto com o guarda-chuva vermelho ainda húmido e o tupperware sujo de sopa. O pensamento, a crítica e a reflexão precisam tanto de discurso como de chão.

— São rosas, senhor, são rosas!

Ontem à tarde apanhei o metro no Viso. É uma viagem maior, atravessa a zona industrial e bairros sociais. Ao passar em Francos, reparei que há muitos roseirais junto aos blocos. São mais bonitos do que o da avenida da Boavista: as rosas crescem à toa e com poucos cuidados, o caule muito alto, as flores emaranhadas umas nas outras, há ervas e flores mais vulgares misturadas. Os jardineiros não sabem, mas para fazer um roseiral basta plantar rosas e deixá-las trepar — é como o chá .

12 de Agosto de 1945

A bomba atómica foi descoberta - a guerra mundial chegou ao fim. Após dias de tempestade em que o vento, soprando a centenas de quilómetros por hora, assobiava por entre as árvores, a tranquilidade regressou. Um nevoeiro fino como um véu paira sobre o lago de Zurique enquanto viajo até à estação. Acomodo-me num canto para não fumadores do expresso e começo a ler. Em Winterthur, uma mãe e a sua filha, grande como uma galinha de engorda, forçam a entrada no comboio. A mãe transforma a carruagem silenciosa num quarto de crianças, prepotentemente, como se fosse o centro do mundo. Uma boneca é instalada no assento, a rapariga é penteada, o pequeno-almoço emerge de um saco de papel amachucado. O seu rosto gordo está ostensivamente voltado na minha direcção. Já não vejo nada à frente... Carl Seelig. Acaba a guerra mundial, começa a outra guerra, a guerra comezinha do quotidiano. Com todos os seus tiranetes, oficiais de pacotilha e fogo lento.

au·ra 

4. [Medicina] Sensação, como que de uma bola, que os epiléticos sentem subir do gastro à garganta, quando sobrevém uma crise.   (Ver também: Aura intelectual)

Marcas do génio

[Robert Walser] entusiasma-se ao falar da "curiosa mestria" de um Charles Dickens ou de um Gottfried Keller, em cujas obras o leitor nunca sabe se há-de rir ou chorar. Trata-se seguramente de uma das marcas do génio. Eu comento: "Isso também acontece frequentemente nos seus livros." Ele pára subitamente no meio da estrada, com um tremendo solavanco, faz um ar muito sério e dirige-se-me num tom suplicante: "Não, não! Peço-lhe encarecidamente que não volte a mencionar o meu nome em conjunto com o de tais mestres. Nem sequer deve sussurrá-lo. Ao ser mencionado na sua companhia, só me apetece enfiar-me num buraco!" Carl Seelig, Caminhadas com Robert Walser . Tradução de Bernardo Ferro.

Observações avulsas sobre a boavista #2

Perto do cruzamento com a Marechal, numa moradia um bocado antiga mas com os requintes da época, há um roseiral. Em rigor, é apenas uma amostra de roseiral, uma coisa quase kitsch, um talhão junto ao muro. Cercado com rede para proteger as rosas de quem passa na rua e dos cães da casa. Volta e meia vejo lá jardineiros profissionais, com ferramentas e adubos. No inverno cortaram rente todos os ramos e aquilo parecia um local de guerra: querem que nasça tudo de novo, com mais vigor e de forma adequada. As rosas já começaram a crescer; cor de laranja, amarelas, brancas, vários matizes de cor de rosa, vermelho vivo, um lilás raro. Todas cheias de força desordenada. As rosas ganham sempre aos jardineiros e aos donos dos jardins.

O problema, obviamente

Segunda-feira, dez da manhã. No bar da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, uma televisão aos gritos parece querer saltar da parede e devorar tudo à sua volta. O Quim Barreiros está a fazer playback no programa da Cristina Ferreira. O problema, obviamente, não está no Quim Barreiros ou na Cristina Ferreira.

Brodski contrariava uma qualquer norma extremamente importante

(...) Brodski criou um modelo inédito de comportamento. Não vivia num estado proletário, mas num mosteiro do seu próprio espírito. Não lutava contra o regime. Simplesmente não dava por ele. E mal sabia da sua existência. A sua falta de conhecimento da vida soviética parecia fingida. Por exemplo, andava convencido de que Dzerjinski estava vivo. E que Komintern era o nome de um grupo musical. Não reconhecia os membros do Politburo do Comité Central. Quando, na fachada do seu prédio, afixaram um retrato de seis metros de Mjavanadze, Brodski disse: — Quem é este? Faz lembrar William Blake... O comportamento de Brodski contrariava uma qualquer norma extremamente importante. E foi desterrado para a região de Arkhangelsk. O poder soviético é uma dama melindrosa. Quem a ofende, sofre. E é pior ainda para quem a ignora... Serguei Dovlatov, O Ofício. ANTÍGONA. Outubro 2018. Páginas 42 e 43.

Como roubar bancos sem violência

Esta manhã, comprei na Vandoma por 50 cêntimos um livro dedicado ao «Samizdat» de teor político durante o período pós-estalinista. Trata-se de uma edição da Futura , de 1975, com selecção de textos, introdução e prefácio de George Saunders (não é o mesmo George Saunders ). Mas não é isto que me faz escrever. No final do volume, o editor inclui uma lista com outros títulos da mesma colecção (Meridianos Futura) e há um que inevitavelmente atrai a atenção de qualquer pobretanas como eu: «Como roubar bancos sem violência», de Roderic Knowles. Custava 90$00, em 1975, e foi, com certeza, livro de cabeceira de vários banqueiros portugueses. Eis um daqueles livros que não aparece nas feiras ou alfarrabistas. Deve ser mais difícil de encontrar do que uma primeira edição de «Os Lusíadas».

Fúria

O que mais impressiona numa obra como Fúria , de Lia Rodrigues (ou Bacantes , de Marlene Monteiro Freitas), é a distância que se abre entre o palco e a plateia. É um imenso abismo. Que força diabólica nos prende à cadeira e nos impede de nos juntarmos aos bailarinos? Que força intolerável nos impede de levantar e exigir também a natureza, o nosso corpo e alma de volta? Que pudor é este, que educação é esta, que nos força a assistir, sentados, confortáveis, bem-comportados, ao que se passa no palco do mundo? Um dia após outro, sem nos mexermos, sem abrirmos a boca. O que nos impede de saltar para o palco e participar do mundo? O que que nos prende à cadeira? Esta nossa incapacidade de derrubar o muro entre a magia e a civilização de plástico em que vivemos (Artaud, outra vez) é a verdadeira violência denunciada por este espectáculo. Não participar, não erguer a voz, não saltar para a roda, e aceitar sem luta este mundo que nos propõem, é a maior das violências. Levantar o traseiro no f