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Mas, na manhã seguinte

(Depois dos espargos, do folar de azeitonas, do salmão fumado e do vinho do Douro — fórmula petisco improvisado — não me apeteceu trabalhar. Sentei-me na varanda a aproveitar o sol e a ler mais umas páginas d’ O Leão de Belfort e agora já sei demasiado, pelo que vai ser difícil defender a crítica a uma obra baseada apenas num parágrafo. Vou tentar não fugir do risco. Dentro do possível.)

A questão geográfica. No excerto referido é apenas o parêntesis (ou seja, a Paris), a Rue Lemercier e o bairro de Batignolles, mas isso basta para prevermos (o plural define os leitores habituais do Alexandre Andrade) deambulações várias pela cidade, viagens de metro e autocarro. E, num salto completamente bem executado, a geografia mistura-se com a arquitectura, e entramos nas casas quase sempre pequenas e alugadas, nos quartos, nos corredores e escadas. É uma espécie de guia, mas ao contrário, em que o objectivo principal (a esperança, diria até) é desviar-nos do caminho certo. Ou, pelo menos, encontrar algo que nos leve à perdição que, por sua vez, pode conduzir ao caminho certo, como acontece em alguns filmes tortuosos.

(Reconheço que já investiguei as implicações linguísticas do apelido da personagem principal e outras coisas e estou a aproveitar-me um bocado disso. Convém abreviar, senão espera-me o desastre total da tarefa a que me comprometi.)

Dissimulado no ponto anterior, o fascínio pela cultura francesa. Cultura, aqui, tem a largura toda, vai desde filmes, nomes de canções ou especialidades de bistrot aos desígnios da revolução francesa e o Alexandre dá conta de tudo, com a perícia de um relojoeiro e a graça intelectual de um jogador de Go.

Continuando no perímetro do parágrafo, é ainda possível detectar uma qualquer trama teatral indefinida que ultrapassa a utilização estratégica da palavra “monólogo” (confesso que este era um dos pontos que queria apresentar, pois é comum a outras histórias do autor, muito antes das leituras para além da área restrita que me levaram ao Balcão de Jean Genet). Por exagero meu, talvez, acho sempre que há qualquer coisa de rivettiano nos livros do Alexandre e isso significa teatral, mas não no sentido de exagerado, apenas literalmente das coisas do teatro: cenários, ensaios, figurinos, actores, textos, palcos. Dizer que gosto muito desta influência é pouco, mas por agora é tudo. Porque quero terminar.

Deixei para o fim o que deveria ter enaltecido logo no início: o modo primoroso como o Alexandre desata a língua portuguesa, alcançando sons de uma deliciosa musicalidade que é raro encontrar na prosa. E o mais espantoso é que consegue essa proeza virando o seu olhar para as coisas mais vulgares e insignificantes do mundo.

Concluída a tarefa com sucesso moderado, posso adiantar que, a seu tempo, serão distribuídos brindes pelos leitores interessados.

Comentários

redonda disse…
eu estou interessada!
c disse…
Ok, mas aviso já que não são t-shirts nem bonés.

É muito melhor, é a transcrição do capítulo 18 do livro.

Mal tenha tempo. No fim de semana. :)
redonda disse…
Como fiquei interessada no livro (a hesitar ainda se o vou comprar ou não) parece-me óptimo :)
obrigada e bom fim-de-semana também