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Mensagens

Algumas traduções de Robert Walser

Da experiência do blogue anterior, aquilo que mais gostei de fazer foi traduzir. Walser, Cage, Panero, Michaux, Cioran. Pôr-me na sombra ou sob alçada é um descanso e ao mesmo tempo uma luta inquieta. Às vezes penso que devia ter seguido essa profissão, mas depois percebo que não é bem assim porque só gosto de traduzir o que gosto de ler (de preferência coisas curtas), porque sou muito lenta e faltam-me os estudos necessários (isso explica as imperfeições). Morreria à fome como a chinesa. Entre 2005 e 2006 traduzi seis textos e mais um resto de Walser a partir de versões inglesas. Vou agrupá-los aqui: A música A música é a coisa mais doce do mundo. Adoro notas musicais. Correria mil léguas só para ouvir uma. Muitas vezes, no Verão, quando passeio pelas ruas e ouço o som de um piano vindo de uma casa desconhecida, paro, pronto a morrer ali mesmo. Gostava de morrer a ouvir um pouco de música. Imagino isso tão fácil, tão natural, mas claro que é impossível. As notas apunhalam-nos mu
O que impressiona sempre em A Regra do Jogo é a balbúrdia. Claro que Jean Renoir filma a balbúrdia com a sua habitual delicadeza e aquilo que caminha a grandes passos para o descalabro transforma-se num bailado com tutus. Mas se isso é o que nos encanta uma e outra vez por causa do ritmo musical e de qualquer coisa que não tem nome, depois de vários confrontos começamos a pensar em outros pormenores, por exemplo: talvez o mais importante do filme seja a forma como Renoir assinala os defeitos (muitos) e as virtudes (poucas) de todas as classes sociais — uma espécie de tiro de partida para um pensamento político radical.

Observações avulsas sobre a boavista #5

Comecei a sair na estação de Francos porque fica mais perto. Mas agora já não é uma questão de distância. Gosto daquele bocado de Tenente Valadim junto à linha que parece um beco e também a saída de operários da fábrica. Gosto da mercearia a meio que vendes sandes e cafés de cápsula aos trabalhadores da Altice como se fosse uma venda dos arredores. Depois do cruzamento com João de Deus, gosto das árvores: na esquina, a ameixoeira de folhas castanho avermelhado, carregada de frutos minúsculos; os bordos japoneses que ladeiam a porta do BPI e crescem inclinados; mais adiante, dois choupos quase tão altos como o Sheraton; ao chegar à avenida da Boavista, o jacarandá em flor.
"I’m glad I’m up here seeing these ancient rivers of ice before they disappear."  People definitely say that. — Hum? De certeza que isto não é um conto de George Saunders?

O princípio da troca de Locard

Aborrece-me esta exaltação tão magnânima sobre a morte de Agustina Bessa-Luís. Geralmente isto significa que vai haver muito falatório e pouca leitura. Transformar um escritor em herói da pátria é sempre má ideia. Por outro lado, é muito cómico descobrir os tiques mais enfáticos da circunstância: os especialistas que se põem nas pontas dos pés tipo “eu é que sou o presidente da junta”; os que estão prestes, prestes, a dizer “Agustina Bessa-Luís sou eu”; e ainda os mais sofisticados que aplicam cientificamente o princípio da troca de Locard com o mindinho: através do contacto entre dois items, irá haver uma permuta .

O Fausto de Meyrink

« Tirando as lunetas, viu diante de si um homem nu, que só trazia uma pele de animal em torno dos rins; uma personagem de alta estatura, de pele morena, espantosamente magro, que tinha colocada na cabeça uma mitra negra, sobre a qual se acendiam partículas de ouro. O médico da Corte percebeu imediatamente que se tratava de Lúcifer , mas não se sentiu nada surpreendido, porquanto, intimamente, havia já muito tempo que esperava por aquela aparição. - Tu és o homem que pode realizar todos os desejos? - perguntou-lhe, inclinando-se voluntariamente. - Podes também...? - Sim, eu sou o deus em cujas mãos os homens entregam os seus desejos - interrompeu o fantasma, indicando a pele que lhe cingia os rins. - Entre todos os deuses, sou o único que usa cinto: os outros são assexuados. Só eu posso compreender os desejos. Aquele que é verdadeiramente assexuado esqueceu para sempre o que são desejos. A mais profunda raiz de todo o desejo, seja ele qual for, raiz impossível de descobrir, repousa

Este quadro é um prazer para os olhos

Mãos. Carantonhas (na mesa e cadeira). Taça com abóbora, maçãs, flores e folhas. Gansos. Chapéus extraordinários. Todos estes elementos dão ao quadro um ambiente tão festivo e alegre que, em vez de uma cena religiosa, diria que estamos a ver um musical. Mais uns segundos e começam todos a dançar e a cantar.

Dilema literário

— Será aceitável levar Vassili Grossman para a praia? Nem por isso. O céu azul, o mar calmo, uma brisa suave — é demasiado, toma a proporção de uma afronta. Como quando Ivan Grigorievitch entra em casa de Nikolai Andréevitch: A cara escura e enrugada do homem do reino prisional, o seu casaco acolchoado, as suas botas de soldado que pisavam desajeitadamente o soalho não condiziam com o mundo de parquê, de armários de livros, de quadros, de lustres.

Disposições morais

Voltamos sempre, ou pelo menos eu volto muitas vezes, à cena final d’ O Carteirista . Talvez seja mesmo assim, talvez seja preciso tempo e caminhos estranhos para chegar onde sempre estivemos, uma espécie de andar sem sair do sítio. Nem todos os problemas pedem uma resposta, mas sim uma disposição.

Algures a meio

Em O Sabor da Cereja , de Kiarostami, há um personagem que procura desesperadamente alguém que o ajude a morrer, numa espécie de suicídio assistido. Em 3 Rostos , de Panahi, há um personagem que procura desesperadamente alguém que o ajude a viver, simulando para isso um suicídio. Ambos os caminhos são estreitos. Só passa um personagem de cada vez. Um desce a encosta escarpada, o outro sobe. E algures a meio, no coração misterioso do mundo, o destino dos dois funde-se, como no conto do Virgilio Piñera.

Gabinete de Patentes, Lda

Em rigor e ao contrário do que apregoa, o mercado é preguiçoso e não se ajusta aos nossos desejos mais profundos. Há por aí tantos dispositivos tecnológicos que não servem para nada e outros, que nos fazem uma falta tremenda, ainda não existem. Neste momento — posso afirmá-lo com absoluta certeza — é urgente a invenção de um detector de arte contemporânea. Já pensei no assunto e tenho uma ideia para o protótipo: deve ser um objecto portátil e discreto feito de material nobre (titánio ou zircónio são boas hipóteses), com um olho a meio como os ciclopes e um rasgão por onde sai uma tira de papel, semelhante às mensagens dos bolinhos de sorte chineses, com o veredicto. O procedimento é fácil. Exemplo um: vamos pela rua fora, encontramos um volume indefinido debaixo duma arcada, apontamos o detector e, se for uma obra de arte, paramos para observar e tecer alguns comentários elevados. Se for um tipo que está para ali a dormir, “é a vida” e seguimos caminho. Exemplo dois: deparamos

Querido Ozu,

o Japão está a ganhar a guerra.

Particular orgulho

Mas o filho, João Brito, também editor, diz que teve um particular orgulho em ter publicado o monumental “Bela do Senhor”, de Albert Cohen, com tradução de António Pescada, e o desgosto de o ver fracassar. Há livros que são como ervas espontâneas, existem por si próprios, são necessários e é isso que importa, encontram sempre uma brecha, uma saída, o êxito. A “Bela do Senhor” não fracassou nem poderá nunca fracassar. Há quanto tempo foi? 20, 25 anos? Estava de férias em São Pedro de Moel e andava a ler “Bela do Senhor” (antes ou depois do “Trincapregos”?) Nessa altura nem sequer tinha carro, levei-o na mochila, na camioneta, nos braços, para a praia e para a esplanada de um café velho junto às rochas, sobranceiro ao areal. O livro dava nas vistas pela espessura (900 páginas) e pela capa amarela. Lembro-me de uma rapariga dizer ao namorado, alto e com enjoo, “Ei, já viste aquele calhamaço!?” Ela não fazia ideia da minha monumental sorte.

Odisseia

Retomo o fio à meada e volto ao personagem de Joan Cornellà, « aquele gajo aleatório da vida real que finge que tem uma vida ok, mas que está a vender produtos de merda de bancos.» O gajo que é segurança num supermercado , o gajo que trabalha na fábrica da Renault , o gajo que não tem onde cair morto , a gaja que procura desesperadamente um amor . A gaja, o gajo, eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles, elas. Todas as gajas e gajos que ficcionam vidas excitantes nas redes sociais como um antídoto para a doença negra dos dias. Todas as gajas e gajos que sempre ficcionaram uma outra vida como um antídoto para a doença negra dos dias. Hoje, ontem, há vinte anos, há cem anos, há milénios. E amanhã e depois, e daqui a mil anos. O «gajo aleatório da vida real» tem uma história. É Ulisses ou Telémaco. A gaja é Calipso, Circe, Atena ou Penélope. Tantas Penélopes e tantos Ulisses. Tantos quantos os homens e as mulheres que «atravessaram este vale árido», amarrados a uma infelicidade, no esforço ridí

Como uma planta robusta se vira para o sol

Lembrava-me do sentimento de quando, há alguns anos, li “O Mar, o mar”, ou ainda mais afastado com “Henry e Cato”; quer dizer, sabia bem o que me esperava ao ler “O sino”: exaltação. E não basta escolher e seguir um dos sentidos da palavra; é um e depois afinal é outro e ficamos nessa indecisão, nunca estamos seguros e isso já faz parte da experiência, do distúrbio. Através de todo o livro parece que se ouve uma música ( de onde vem esta música? do ar ou da terra? ) e ao mesmo tempo: há uma tempestade com chuva e trovões (não estou certa dos trovões), uma morte, um desatino mental, um sino que é retirado dum lago e um sino que cai num lago, o próprio lago cheio de zonas obscuras, três sermões divergentes, simetrias feitas e desfeitas a alta velocidade, acidentes, um cão chamado Murphy, as habituais dificuldades em lidar com o amor e outras mais inconfessáveis — e é tudo tão forte que está para além do medo. Porque Iris Murdoch transforma o que é terrível numa coisa imensamente viva e

Cabras, bois e porcos

— Quer-me parecer — disse ele — que a senhora Greenfield é aquilo a que popularmente se chama uma cabra. Tenho muita pena de te dizer isto, mas é preciso que nos habituemos a chamar os bois pelos nomes. Só podem resultar sarilhos intermináveis se não o fizermos. — Tu dizes que não ouviste barulho nenhum durante a noite? — perguntou Michael. — Absolutamente nada. Mas ultimamente tenho andado tão cansado que durmo como um porco. Nem a trombeta do Juízo Final me acordaria; teriam de mandar cá abaixo um mensageiro especial. O Sino, Iris Murdoch, Relógio d’Água, julho de 2016, páginas 229 e 230

Real e perfeito

Os quadros comoveram sempre Dora. Mas hoje a comoção que sentia era de natureza diferente. Ficara maravilhada, e com uma espécie de gratidão, pelo facto de continuarem ali, e o coração enchia-se de amor pelos quadros: pela sua autoridade, pela sua maravilhosa generosidade, pelo seu esplendor. Ocorreu-lhe então que aqui estava algo de real e algo de perfeito. Onde ouvira ela dizer qualquer coisa acerca de a perfeição e a realidade coexistirem no mesmo lugar? O Sino, Iris Murdoch, Relógio d’Água, julho de 2016, página 190.

Aquele gajo aleatório

O rosto sorridente do teu personagem principal tornou-se quase o teu cartão de visita, tendo chegado a significar um sentido de desespero, negação e mania no teu trabalho. Ele é baseado numa pessoa real? O meu personagem não é baseado em ninguém específico, mas mais numa mistura de rostos. Podes ver esse tipo de sorriso nas imagens gráficas do Aphex Twin, em alguns personagens do Goya e naquele gajo aleatório da vida real que finge que tem uma vida OK, mas está a vender produtos de merda de bancos. Joan Cornellà.