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Como uma planta robusta se vira para o sol

Lembrava-me do sentimento de quando, há alguns anos, li “O Mar, o mar”, ou ainda mais afastado com “Henry e Cato”; quer dizer, sabia bem o que me esperava ao ler “O sino”: exaltação. E não basta escolher e seguir um dos sentidos da palavra; é um e depois afinal é outro e ficamos nessa indecisão, nunca estamos seguros e isso já faz parte da experiência, do distúrbio.

Através de todo o livro parece que se ouve uma música (de onde vem esta música? do ar ou da terra?) e ao mesmo tempo: há uma tempestade com chuva e trovões (não estou certa dos trovões), uma morte, um desatino mental, um sino que é retirado dum lago e um sino que cai num lago, o próprio lago cheio de zonas obscuras, três sermões divergentes, simetrias feitas e desfeitas a alta velocidade, acidentes, um cão chamado Murphy, as habituais dificuldades em lidar com o amor e outras mais inconfessáveis — e é tudo tão forte que está para além do medo. Porque Iris Murdoch transforma o que é terrível numa coisa imensamente viva e misteriosa. Digamos que ela cria uma corrente eléctrica que, ao contrário das convenções mas no sentido real, vai do pólo negativo para o pólo positivo — noutro tempo poderia ser acusada de bruxaria ou santidade — insuflando tanto ar no peito que, por momentos, acreditamos que a alma é uma substância e o corpo algo inatingível.

É sobre estas questões diversas que as personagens tentam alinhavar uma moral que lhes sirva de caminho, ou pelos menos onde possam fechar os olhos e descansar um pouco do combate.

Poderia citar várias frases para provar o alcance dos elogios (Iris Murdoch é tão exímia a escrever sentenças perfeitas que até chateia), mas vou apenas circunscrever-me a três parágrafos incompletos do último capítulo, quando Michael e Dora estão sozinhos em Imber Court em jeito de comissão de liquidação, a limpar os cacos de uma empresa espiritual que deu para o torto mais do que era possível imaginar.

Mas a primeira agonia passou e Michael encontrou-se ainda a viver e a pensar. Tendo, ao princípio, receado sofrer de mais, mais tarde veio a recear sofrer de menos, ou não sofrer da maneira devida. O coração humano é atraído para aquilo que o consola por uma grande força magnética; e, no fim, até o sofrimento se torna consolador. (...)
O padrão que ele vira a orientar-lhe a vida existirá somente na sua imaginação romântica. Ao nível humano não existiam padrões. “Porque, assim como os céus são mais altos que a terra, também os meus caminhos são mais altos que os vossos, e os meus pensamentos mais altos que os vossos.” E ao sentir, com imensa amargura, a inflexibilidade destas palavras, Michael dizia a si mesmo: Deus existe, mas eu não acredito n’ Ele. 
Eventualmente, uma espécie de tranquilidade desceu sobre ele, como um animal perseguido que se agacha num esconderijo durante tanto tempo que acaba por se embalar numa espécie de paz. Os dias passavam silenciosos como um sonho. Depois do trabalho sentava-se com Dora no refeitório, bebendo inúmeras chávenas de chá e conversando com ela acerca dos seus planos, enquanto as pétalas das rosas que murchavam caíam sobre a mesa espalhando pelo ar um aroma agradável e fazendo desaparecer o cheiro insistente da comida. Via Dora virar-se toda para a vida e para a felicidade, como uma planta robusta se vira para o sol, e assimilar tudo o que encontrava pelo caminho.

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