Retomo o fio à meada e volto ao personagem de Joan Cornellà, «aquele gajo aleatório da vida real que finge que tem uma vida ok, mas que está a vender produtos de merda de bancos.» O gajo que é segurança num supermercado, o gajo que trabalha na fábrica da Renault, o gajo que não tem onde cair morto, a gaja que procura desesperadamente um amor. A gaja, o gajo, eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles, elas. Todas as gajas e gajos que ficcionam vidas excitantes nas redes sociais como um antídoto para a doença negra dos dias. Todas as gajas e gajos que sempre ficcionaram uma outra vida como um antídoto para a doença negra dos dias. Hoje, ontem, há vinte anos, há cem anos, há milénios. E amanhã e depois, e daqui a mil anos. O «gajo aleatório da vida real» tem uma história. É Ulisses ou Telémaco. A gaja é Calipso, Circe, Atena ou Penélope. Tantas Penélopes e tantos Ulisses. Tantos quantos os homens e as mulheres que «atravessaram este vale árido», amarrados a uma infelicidade, no esforço ridículo e heróico de escapar à morte. Uma Odisseia sem princípio nem fim. A história da humanidade, vidro mil vezes estilhaçado. Basta fixar o olhar num dos minúsculos vidrinhos e, em quatro ou cinco horas, vemos o mundo.
de Cristina Fernandes e Rui Manuel Amaral
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