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Mensagens

A greve continua

Esta greve dos motoristas é um dos acontecimentos políticos mais interessantes dos últimos tempos. Se avançarmos para além das questões básicas que excitam os jornalistas, deparamos com uma paisagem complexa* que merece atenção e análises em várias frentes. Mas o facto que me perturba mais talvez seja como, sobranceiros a todos os discursos**, os eternos valores da honra e vergonha traçam o nosso destino. * O desconhecimento generalizado (envolve políticos, comentadores, historiadores, isto é, gente que vive numa situação económica paralela) dos ordenados pouco acima dos valores mínimos instituídos e das condições de trabalho degradadas da maioria dos trabalhadores; a iliteracia financeira que impede a leitura correcta de um recibo de vencimento e dos esquemas que esconde; a manha das pequenas e médias empresas que disfarçam uma gestão vaidosa e mal feita, sempre no fio da navalha, assente em salários baixos e sem perspectivas de crescimento, assumindo tantas vezes o velho papel

Ainda mais pobre

A pergunta do porquê de Beckett escrever em francês desde 1945 foi-lhe feita tantas vezes que já se reuniu toda uma série de respostas. A mais antiga, de 1948, foi expressa num francês coloquial: Para me fazer notado . A seguinte data de 1956: Tinha simplesmente prazer nisso... Para mim tornava-se muito mais excitante . No mesmo ano: Para escrever sem estilo. E em 1968: Para me tornar ainda mais pobre. Foi essa a verdadeira motivação. Klaus Birkenhauer, Beckett . Tradução de Maria Emília Ferros Moura. A verdade é que Beckett começou a escrever em francês antes de 1945.

Mais vergas do que gozo

Foi precisamente em Londres que Belacqua de Beckett assumiu a sua forma definitiva: a partir do fragmento do romance Dream of Fair to Middling Women , utilizado como "primeira pedra", Beckett elaborou uma colectânea de dez contos com o título de More Pricks Than Kicks . Esta formulação constitui um choque para qualquer cidadão de língua inglesa (...). Pode ainda assim tratar-se de uma brincadeira bíblica sobre a frase da Bíblia to kick against the pricks ("levantar protestos"); ou ainda uma brincadeira com a expressão more kicks than halfpenc e ("mais queixas do que agradecimentos"). No entanto, os dois possíveis significados secundários apagam-se ante o principal significado actual destas palavras; prick quer dizer, na verdade, espinho ou aguilhão, mas na linguagem coloquial, sobretudo, pénis; e kick não significa apenas queixas, mas também uma alegre excitação, bem-estar. Sem o significado secundário inglês inofensivo, o título seria algo de tão ordin

Ka

Ninguém escapa. Na contracapa de “Um repentino pensamento libertador”, duas referências: “por muitos considerado o Raymond Carver europeu” e “o humor seco e absurdo de Askildsen não é muito diferente do de Beckett”. (Desconfio que isto acontece com mais frequência nos livros de contos.) Como se os críticos precisassem — antes de qualquer pensamento — de arranjar um lugar para cada escritor numa tabela periódica. Todos ordenados de acordo com os números atómicos, configuração electrónica e recorrência das propriedades. — E isso basta? — Para a Amazon vender, sim.
O tipo de poemas que escrevo — na maioria curtos e a precisar de ajustes sem fim — lembram-me muitas vezes partidas de xadrez. Para resultarem dependem da colocação das palavras e imagens na ordem correcta e os versos finais devem ter a inevitabilidade e surpresa de um xeque-mate executado com elegância. Charles Simic

Outdoors

“Faz acontecer” é a frase do novo outdoor do Bloco de Esquerda. O CDS parece um sistema avariado (“a preparar o futuro” sobre fundo azul). Diga o que disser, o PSD não consegue comunicar — afasia em fase crónica. O PS capitaliza números. A Iniciativa Liberal diverte-se com trocadilhos e outras graçolas. (...) Sem coragem para uma linguagem política directa, os partidos enredam-se nas armadilhas do discurso publicitário. Querem vender; eu não quero comprar. Quando é que isto acaba?

Cartas de amor

A fotografia estava entre as páginas de um livro que comprei na Vandoma. Uma edição brasileira de «Contos Soviéticos» , de 1944 (Empresa Gráfica «O Cruzeiro», Rio de Janeiro). Não tem nenhuma informação na frente ou no verso, mas foi tirada em Portugal, certamente entre os anos 70 e 80. O livro também não está assinado. O edifício que enquadra a imagem parece ser uma fábrica. Quem são estes personagens? Operários da fábrica? Administrativos? Membros da direcção? Porque decidiram eles fazer as fotografias do casamento (presumo que após a cerimónia religiosa) no cenário cinzento da fábrica e não, como se fazia na época, na praia ou num jardim? Que idade teriam eles? Vinte e poucos? Trinta? Hoje terão sessenta, setenta. Estarão vivos? Tiveram filhos? Para onde corriam? Ou de que passado escapavam eles? O corpo do homem parece querer levantar voo e levar a rapariga com ele. O livro inclui uma história de Nadejda Aleksandrovna Lokhvitskaya, escritora muito pouco «soviética», que se exilou

No peito dos desafinados

A certa altura, Stefan Zweig diz que E.T.A. Hoffmann lhe lembra um instrumento musical partido. Quer dizer, quando Hoffmann tenta uma nota alegre o que lhe sai é uma nota triste. Quando procura uma melodia serena sai-lhe uma variação assustadora. «Com efeito, E.T.A. Hoffmann foi sempre um instrumento com uma pequena fenda.» O mestre alemão seria, pois, uma espécie de escritor com defeito. Não um defeito técnico, como acontece numa máquina — um cortador de relva que não funciona correctamente, por exemplo —, mas um defeito humano, criador de arte. Seja como for, um instrumento musical capaz de criar uma música estranha e desafinadamente bela. Não há melhor elogio que se possa fazer a um escritor.

Goodwill

— Ah, finalmente um gráfico com valores interessantes.

Influenciadores do século XX

Outros gastos e perdas

A linguagem dos Relatórios e Contas é muito próxima de uma certa poesia de origem anglo-saxónica e pendor lacónico. Em cada tabela encontro títulos/versos formidáveis. Que entusiasmo! Infelizmente, os contabilistas não se apercebem de como isto podia acrescentar textura à sua vida amorosa.

Anyone for cricket?

Às vezes a crítica literária marimba-se para análises e julgamentos; atira-se à matéria com tal vontade que dá origem a objectos excêntricos. A tradução do conto Bliss , de Katherine Mansfield, por Ana Cristina Cesar ou, descobri agora, os sete volumes de À Procura do tempo Perdido transformados em argumento por Harold Pinter  (com a vantagem de nunca ter sido filmado). Dr. Percepied: Well, I must be going. I have to look in to see Monsieur Vinteuil. Not in the best of health, poor man. Father: Mmmnn. Dr. Percepied: His daughter’s friend is staying with them again, apparently. Father ( grimly ): Is she? Bom, talvez já não se possa chamar a estes exercícios, crítica — mas então chama-se crítica a quê?

Influenciadores do século XX