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Mensagens

Aquilo a que chamamos pensamento instantâneo

Compreenda, escrever aforismos é muito simples: vamos a jantares, uma senhora diz um disparate, isso inspira uma reflexão, regressamos a casa e escrevemo-la. É mais ou menos assim o mecanismo, não é? Ou então à noite temos uma inspiração, um princípio de fórmula, às três horas da madrugada escrevemos essa fórmula. E finalmente isso torna-se um livro. Não é sério. Não se pode ser professor universitário com aforismos. Isso não é possível. Mas, numa civilização em desagregação, este género de coisas está muito bem. É evidente, não se deve nunca ler um livro de aforismos de uma ponta à outra. Porque temos a impressão de caos e de uma falta de seriedade total. É preciso lê-lo unicamente ao anoitecer antes de nos deitarmos. Ou num momento de tristeza, de desgosto. Ler Chamfort de uma ponta à outra não faz sentido, pois os seus aforismos são generalidades instantâneas. É pensamento descontínuo. Você tem um pensamento que parece explicar tudo, aquilo a que chamamos pensamento instantâneo. É

Odradeks

Vento e chuva. Por toda a parte, há guarda-chuvas desfeitos e abandonados pelo chão. Lembram odradeks perdidos. Tristes odradeks que se afastaram demasiado de casa e que, exaustos e ensopados, desistiram de achar o caminho de volta.

Sou, neste momento, apocalíptico

Durante um tempo, quando era jovem, acreditei na revolução como acreditam os jovens de hoje em dia. Hoje em dia acredito um bocado menos. Sou, neste momento, apocalíptico. Vejo defronte de mim um mundo doloroso, cada vez mais vil. Não tenho esperanças; portanto não esboço sequer um mundo futuro. Pier Paolo Pasolini, Julho de 1971.

A banana imanente

É através dos símbolos e não da economia que chegamos ao centro nevrálgico do “capitalismo”. Aqui nada é literal; tudo o que dizemos é uma metáfora, tudo em que tocamos é sempre algo que representa outra coisa . O caso mais recente é a banana de Maurizio Cattelan. O que aconteceu na feira de arte contemporânea Art Basel de Miami é revelador da transformação do sistema económico numa teoria unificadora: colar uma banana à parede; vendê-la por 120 mil dólares, comê-la e dizer que é uma performance ( chama-se “Artista com fome”). Mas o melhor está exposto neste parágrafo: O encarregado das relações com museus da Galerie Perrotin, Lucien Terras, explica que o acto não diminui o valor da obra. “Ele não destruiu a obra de arte. A banana é a ideia”, disse Terras em declarações ao jornal Miami Herald. A banana em exposição não é eterna, sendo regularmente substituída. E por isso, mais tarde, o director da galeria, Emmanuel Perrotin, montou de novo a obra de arte de Cattelan nas paredes

Auschwitz

Num conhecido supermercado de livros, entre best-sellers sobre maquilhagem, culinária, mindfulness e a Bíblia, conto vários romances cor-de-rosa «inspirados» em Auschwitz: As Gémeas de Auschwitz , O Tatuador de Auschwitz , O Farmacêutico de Auschwitz , A Bailarina de Auschwitz , O Violino de Auschwitz , A Bibliotecária de Auschwitz , Os Bebés de Auschwitz . As capas são muito parecidas: fotomontagens com neve, arame farpado, a linha de comboio e a silhueta do campo em fundo. O que se passa connosco? Que estranha sombra é esta que cresce entre nós, neste final de 2019?

O Gangue da Chave Inglesa

Não acalento desígnios literários. Nunca senti, ao ler um livro que me agrada muito, a vontade de tê-lo escrito. No entanto tenho esse desejo em relação a títulos. Por exemplo:  “O Gangue da Chave Inglesa”  —  traduzir a sequência destas palavras já me dava uma vaidade de pavão.

O cavalo e a mosca

Um grupo de homens alemães chega ao sul da Bulgária para construir uma barragem. Essa é a única linha narrativa de “Western”, o resto são fragmentos que se desenrolam quase sem objectivo. No princípio só vemos a vegetação, as pedras, o rio, as montanhas. Depois vamos diferenciando cada um dos homens e aproximamo-nos de Meinhart, um tipo calado e, talvez por causa disso, um bocado antiquado. Surge uma aldeia e as pessoas que lá vivem. Conversam, bebem, estabelecem-se relações. Ouve-se uma mosca. Há uma festa. A determinada altura, uma das personagens diz que parece uma viagem no tempo, para o passado. E está certa — é uma viagem no tempo não só para aqueles homens mas para o próprio filme. É como se Valeska Grisebach conseguisse filmar sem criar imagens, regista o que se vai passando em redor sem o cristalizar. Os diálogos entre os alemães e os búlgaros são muito básicos, entendem poucas palavras uns dos outros, vão ensinando o som que corresponde a pau ou a rosto ou a liberdade

Secret Spots

Leio no jornal que uma empresa chamada «Porto Secret Spots», criada «por portuenses e para portuenses» (talvez por isso use o inglês no nome), acaba de juntar ao seu portefólio de produtos a possibilidade de visitas à Casa-Museu Fernando de Castro (Rua de Costa Cabral), em troca de 60 euros (para grupos até cinco pessoas) ou 70 euros (para grupos de seis a dez pessoas). O «Porto Secret Spots», que tem por objectivo «dar visibilidade a locais menos conhecidos no Grande Porto», «quer chamar a atenção para mais este segredo da cidade.» Para ajudar os turistas a descobrirem este «local secreto», a empresa «promete» desenvolver «um guião acessível a todos e não tão histórico.» Pretendem também que «todos os guiões dos futuros locais secretos sejam assim.»
Se tivéssemos músculos no cérebro: os homens que praticam o pensamento seriam capas de revista, modelos ou aberrações de feira; pensar obedeceria a critérios exteriores e visíveis; as palavras perderiam o seu poder; o ginásio voltaria a ser gymnasion . Uma hipótese um bocado grotesca, mas bastante exequível — a anatomia é uma disciplina em franco progresso. Vejam, por exemplo, a imagem do senhor que ilustra o natal dos intelectuais. Que cabeça bem definida!

Seguir caminho

Acho que foi com a literatura que aprendi este truque: transformar um acontecimento grandioso, de consequências devastadoras, numa coisa de nada. Um papelzinho que amachucamos e metemos no bolso. Seguir caminho.

Uma ervilha debaixo do colchão

Há uns anos tentei explicar, pelo menos a mim mesma, porque gosto tanto de contos. Tem a ver com a duração, a intensidade contida e, acima de tudo, a forma de quebrar . Continua a ser assim, não mudo uma palavra. No entanto, ao reler o segundo conto de “Demasiada felicidade”, apercebi-me de outra coisa tão evidente que se torna invisível: como nas histórias infantis, Alice Munro coloca uma ervilha debaixo do nosso colchão logo no início. Quer dizer, a narrativa cresce em direcções opostas. Vamos conhecendo as personagens e as suas circunstâncias triviais; ao mesmo tempo, um pressentimento divergente insinua-se como uma sombra e agarra-nos sem descanso. Não é a tensão característica das novelas policiais — é pior, a ferida fica por resolver.

Botânica moderna

Ontem foi dia de inauguração das iluminações de Natal. Houve multidão na Avenida dos Aliados, espectáculo de video mapping , fogo-de-artifício e as televisões fizeram directos.  A árvore mais alta da avenida é uma espécie de conífera em aço, com 30 metros e 31.600 lâmpadas LED.

Sexta e sábado

Wen Hui e Jana Svobodová , no Campo Alegre, e Renata Portas , na Baixa. Em dois dias, sexta e sábado, dois espectáculos raros e exemplares. No teatro, o que se poupa em meios, ganha-se em ideias. O que se poupa em pirotecnia, ganha-se em sensibilidade e clareza. Uma palavra e um gesto num espaço vazio têm a força de um incêndio. Uma história comum, contada olhos nos olhos, tem mais pernas para correr o mundo.

Pergunta

Mas, sobretudo, permite explicar um fenómeno sobre o qual, penso, os estudantes de arquitectura jamais deveriam deixar de reflectir: o facto de que, como vocês sabem, o campo de Auschwitz ter sido projectado e construído por um arquitecto, Fritz Erl, que tinha estudado na Bauhaus. Por conta de uma venturosa – ou, talvez, desventurada – circunstância, o projecto do campo, que também fora firmado por outro arquitecto, Walter Dejaco, conservou-se. Em 1972, os dois arquitectos foram processados em Viena e absolvidos. Mas a pergunta que surge aqui é: como é possível que arquitectos, cuja seriedade é indubitável, tenham podido projectar um edifício onde de forma alguma teria sido possível sentir-se em casa, isto é, habitar? O que pode ser uma arquitectura que se funda sobre a impossibilidade da habitação? Giorgio Agamben.