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Mensagens

Ocorrências

Lá fora estão trinta graus. Dentro de casa estão mais dez. A água ferve nas torneiras. A louça do pequeno-almoço seca na banca em poucos minutos. A ventoinha abana a cabeça, vezes sem conta, como que para afastar ideias tristes. As portas estalam. Os móveis rangem. Ou serei eu?

Telepatia

Fiz uma busca em quatro línguas, mas não consegui encontrar nenhuma ligação entre os aforismos de Cioran e a palavra telepatia. É pena, parece-me que tudo na palavra — até o seu ar vagamente de pacotilha — ajusta-se bem aos pensamentos de Cioran. Há alguns anos escrevi isto: Corpo e sombra só se conhecem telepaticamente . Se calhar serve para colmatar a falha — uma tradução apócrifa, uma nota de rodapé encontrada fora do sítio, calçar os sapatos dos outros, qualquer coisa desse tipo.

Group feeling

An Argentinian film censor was asked once why he didn’t allow on a cinema screen some footage that had been on TV screens. His answer was that even if more people, in figures, watched TV; they watched it in isolation, never more than four or five, while a cinema audience develops a group feeling, and if somebody booed or shouted at the screen others might follow and a riot could start. That’s a man who knows his job! De uma entrevista a Dusan Makavejev.

Camões - Uma fotonovela

O Camões desapareceu. Já apareceu, mas não é o Camões.

Uma coisa que acabara com os Gregos e os Romanos

A rapariga doutorara-se em Filosofia, e isso deixara Mrs. Hopewell completamente desorientada. Pode dizer-se “A minha filha é enfermeira”, ou “A minha filha é professora”, ou até “A minha filha é engenheira química”. Mas não se pode dizer “A minha filha é filósofa”. Isso era uma coisa que acabara com os Gregos e os Romanos. A gente sã do campo, de Flannery O’Connor.  Tradução de Clara Pinto Correia, edição Cavalo de Ferro.
Estou sentada no sofá, digo “vou ligar à minha mãe”, marco o número. Uma mensagem gravada informa que ela não está disponível. É a voz da minha mãe. Acordo.

Escolha

Dois filmes recentes: Martin Eden , de Pietro Marcello, e A verdade , de Hirokazu Kore-eda. Ambos giram em torno de personagens que, de uma maneira ou de outra, trocaram a vida pela arte. Um escritor e uma actriz. Tudo é sacrificado pelo desejo de alcançar uma suposta perfeição artística. Mas, tal como no Fausto , e com a dose certa de moralismo, o preço do sucesso é sempre demasiado elevado: loucura, solidão, autodestruição. No extremo oposto, está o «doutor», personagem do conto O visitante da noite , de B. Traven. Um escritor que vive isolado na floresta tropical e que escreve para um único leitor: ele próprio. Todo o prazer da criação está contido unicamente no acto da escrita: «Sempre que concluía um livro, relia-o, corrigia-o, introduzia-lhe as alterações que julgava essenciais para o tornar perfeito, o mais próximo possível da minha ideia de perfeição, e, feito isto, sentia-me feliz, plenamente preenchido. Logo a seguir destruía o livro...» Escrevi que o «doutor» está no «extr
Fernando Savater: Você não abandonou apenas a sua pátria, mas também, e isso é o mais importante, a sua língua. Emil Cioran: É o maior acidente que pode acontecer a um escritor, o mais dramático. As catástrofes históricas não são nada à beira disto. Escrevi em romeno até 1947. Nesse ano vivia numa casinha perto de Dieppe e traduzia Mallarmé para romeno. De repente disse para mim mesmo: “Que absurdo! De que serve traduzir Mallarmé para uma língua que ninguém conhece?” Foi então que renunciei à minha língua. Comecei a escrever em francês, e isso foi muito difícil porque, por temperamento, a língua francesa não me convém: preciso de uma língua selvagem , uma língua de bêbado. O francês foi para mim como um colete-de-forças. Escrever noutra língua é uma experiência aterradora. Refletimos sobre as palavras, sobre a escrita. Quando escrevia em romeno, fazia-o sem me dar conta, simplesmente escrevia. Nessa altura as palavras não eram independentes de mim. Quando comecei a escrever em fra

Começar tudo de novo

- Vejamos então. Muitas vezes penso como seriam diferentes a nossa arte, os nossos escritos, as nossas técnicas, as nossas arquitecturas, tudo aquilo que realizámos se, em 1650, por exemplo, tudo o que até então fosse obra do homem tivesse sido destruído, tão meticulosamente destruído que nenhum ser humano pudesse lembrar-se de como era uma roda de carroça, nem se a Vénus de Milo fora uma pintura, um poema ou um nome inscrito na quilha de um navio, ou se a democracia e monarquia se referiam a alimentos ou eram sinos de igreja. Pela minha parte, estou convencido de que o mundo seria hoje, provavelmente, um lugar cem vezes mais agradável para viver se humanidade, de tempos a tempos, tivesse a oportunidade de desfazer-se de toda a história e de toda a tradição e voltasse a começar do zero, sem ideias gastas, lugares-comuns e opiniões que criam obstáculos ao nascimento de um mundo inteiramente novo. B. Traven, O visitante da noite e outros contos . Tradução de Manuela Gomes.
François Bondy: Como é que conseguiu este apartamento no sexto andar, com esta vista magnífica sobre os telhados do Quartier Latin? Emil Cioran: Graças ao snobismo literário. Já há muito tempo que estava farto do meu quarto de hotel na rua Racine e pedi a uma agente imobiliária que me procurasse qualquer coisa, mas ela não me mostrou nada. Então enviei-lhe um livro que acabara de publicar, com uma dedicatória. Dois dias depois trouxe-me aqui, onde a renda — acredite ou não — é de cerca de cem francos, o que corresponde aos meus meios de subsistência. Com as dedicatórias de autor é assim. A sessão de autógrafos na Gallimard, sempre que um livro é publicado, é uma coisa que me aborrece e uma vez esqueci-me de assinar metade dos livros. Nunca tive tantas críticas más. É um rito e uma obrigação. Nem Beckett pode escapar a isso. Joyce nunca o conseguiu entender. Disseram-lhe que em Paris um crítico espera sempre uma carta de agradecimento do autor quando diz bem dele. Uma vez ele concor

Tipos de confinamento: o confinamento beckettiano

Samuel Beckett, Endgame , por Tania Bruguera.

Gaivotas na Normandia

Na costa normanda, a uma hora tão matinal, eu não precisava de ninguém. A presença das gaivotas incomodava-me: afugentei-as com pedradas. Ah, os seus gritos de uma estridência sobrenatural — compreendi que era justamente isso que me faltava, que só o sinistro podia apaziguar-me, e que foi para o encontrar que me levantei antes do dia. Emil Cioran, Do inconveniente de ter nascido.

Tolstoi ou Dostoiévski

Cada vez que penso no grande temor da morte em Tolstói, começo a compreender o pressentimento do fim dos elefantes. O sofrimento é a única causa da consciência (Dostoiévski). Os homens dividem-se em duas categorias: os que percebem isso, e os outros. Emil Cioran, Lágrimas e Santos.

Sombra

Já passaram cinco meses desde que estou em casa. Talvez mais. Perdi a conta ao tempo. A gaivota que nasceu no telhado em frente já tem o tamanho de um pato pequeno. Move-se de um lado para o outro, sobre as telhas, com a mesma destreza com que um tipo sóbrio caminha numa rua de paralelos. Tem um apetite voraz. Os pais desembaraçam-se como podem, atirando-se aos sacos do lixo. De vez em quando, passam à frente do sol e uma sombra rápida desliza pelas paredes de minha casa. É o momento mais «verdadeiro» do meu dia de teletrabalho.