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Fernando Savater: Você não abandonou apenas a sua pátria, mas também, e isso é o mais importante, a sua língua.

Emil Cioran: É o maior acidente que pode acontecer a um escritor, o mais dramático. As catástrofes históricas não são nada à beira disto. Escrevi em romeno até 1947. Nesse ano vivia numa casinha perto de Dieppe e traduzia Mallarmé para romeno. De repente disse para mim mesmo: “Que absurdo! De que serve traduzir Mallarmé para uma língua que ninguém conhece?” Foi então que renunciei à minha língua. Comecei a escrever em francês, e isso foi muito difícil porque, por temperamento, a língua francesa não me convém: preciso de uma língua selvagem, uma língua de bêbado. O francês foi para mim como um colete-de-forças. Escrever noutra língua é uma experiência aterradora. Refletimos sobre as palavras, sobre a escrita. Quando escrevia em romeno, fazia-o sem me dar conta, simplesmente escrevia. Nessa altura as palavras não eram independentes de mim. Quando comecei a escrever em francês, todas as palavras se impuseram à minha consciência; tinha-as diante de mim, fora de mim, nas suas células, procurava-as: “Tu agora, e agora, tu”. É uma experiência que se assemelha a outra que me aconteceu quando cheguei a Paris. Estava hospedado num pequeno hotel no Quartier Latin e, no primeiro dia, quando desci à recepção para telefonar, encontrei o empregado do hotel, a mulher e o filho, a  elaborar a ementa: preparavam-na como se se tratasse de um plano de batalha! Fiquei estupefacto: na Roménia sempre me alimentei como um animal, quero dizer, inconscientemente, sem prestar atenção ao que significa comer. Em Paris, dei-me conta que comer é um ritual, um acto de civilização, quase uma tomada de posição filosófica... Assim como escrever em francês deixou de ser um gesto instintivo como era quando escrevia em romeno e adquiriu uma dimensão deliberada, também deixei de comer inocentemente... Ao mudar de língua, liquidei de imediato o passado: mudei completamente de vida. Mesmo agora, parece-me que ainda escrevo numa língua que não está ligada a nada, sem raízes, uma língua de estufa.


Entrevistas com Emil Cioran, Arcades, 1995.

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