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Mensagens

Para onde fugir?

ANDREI BOTH: (...) Vivemos num mundo vigiado, sob a influência de um cartel digital, o Big Brother espreita-nos. Vivi 32 anos sob o comunismo e a opressão, e esta atmosfera tipo KGB que sinto a crescer assusta-me imenso. Estou a aproximar-me do fim da vida, farei 70 anos em breve e tudo isto me parece um autêntico pesadelo. Para onde fugir? GÁBOR TOMPA: Não há lugar para onde fugir, essa é a diferença agora. É uma afirmação paradoxal: felizmente que se é velho! [Risos.] Foi realmente nos últimos cinco anos que o discurso no mundo se tornou mais extremo e ideológico. Não há diálogo, apenas atitudes extremadas e um discurso do ódio. O ativismo, seja de que tipo for – comunismo, nazismo, feminismo, sexismo –, divide o mundo em seguidores e inimigos, e isso cria ódio. O mundo nunca esteve tão polarizado e parece que já entramos na Terceira Guerra Mundial. É difícil resistir a este tipo de ideologização e de lavagem cerebral que se sente pelo mundo fora e pelas uni

Excessos vergonhosos

Passo o feriado a ler O Senhor Secretário , a magnífica novela de Henryk Sienkiewicz. A dada altura, o narrador conduz o leitor à igreja de Wrzeciadza. É domingo de manhã e o padre Czyzyk celebra a missa. Durante o sermão, o vigário evoca a «heresia dos maniqueus cataristas». O narrador comenta que não sabe a que propósito vem esta referência aos maniqueus cataristas na homília do vigário: «Não sei por que causa ou razão.» O tradutor, Isolino Caramalho , introduz uma nota de rodapé para esclarecer o leitor sobre estes misteriosos maniqueus cataristas: «Seita religiosa, cujos adeptos se entregavam a excessos vergonhosos.» Apenas isto. Nem mais uma palavra. Mas a que excessos vergonhosos se entregavam eles? Isso é que eu gostava de saber.

Maria da Visitação

Esta noite, durante o meu passeio habitual, vi com todos os detalhes a peça que podia fazer da história desta falsa santa portuguesa, Maria da Visitação , cujas façanhas li num livro sobre os fenómenos físicos do misticismo. Ela ocupava o palco sozinha durante duas horas, e o monólogo tratava de todos os aspectos que comporta uma santidade duvidosa mas patética. Escusado será dizer que esta peça, depois de a ter elaborado perfeitamente na minha cabeça, vai ficar por aí. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Exuberância irracional

No Público de hoje , o economista Ricardo Cabral escreve o seguinte: «No actual contexto pandémico e de “exuberância irracional” dos mercados, retirar estímulos e aumentar rapidamente as taxas de juro seria problemático.» O texto, como quase todos os que são escritos por economistas, está carregado de passagens similares. Normalmente, não perco muito tempo com este «género literário». Desta vez, porém, a frase fascina-me e preciso de a registar: a exuberância irracional dos mercados . É todo um programa. A economia é a nova religião, já o sabemos, e os economistas são os padres do nosso tempo: especialistas num mistério que não dominam, mas que procuram interpretar e transmitir aos fiéis. E quanto mais exuberantes e irracionais as interpretações, aparentemente mais «credíveis».
É daquelas coisas que saem sem explicação e ainda não tive tempo para analisar se é disparate ou intuição certeira (sou boa nas duas actividades): o episódio “A Friend in Deed!” do Columbo tem umas cenas que parecem saídas dos contos da Flannery O’Connor. Não se trata de semelhanças literárias, nada disso — é uma ligação visual, qualquer coisa ao nível dos figurantes e cenários. Quando Hugh Caldwell entra no bar para falar com Artie Jessup e quando Mark Halperin vai ao (falso) apartamento de Jessup esconder as jóias — nessas duas situações, reconheci os ambientes de algumas histórias de Flannery O’Connor. Como se Flannery fosse artista plástica e não escritora.

A vida na Terra

Fomos ver Drive my Car , de Ryûsuke Hamaguchi. Sob a fina película do filme - a pele do filme? -, um número incontável de histórias cresce em todas as direcções. Cada personagem tem sete vidas, muda sete vezes de máscara, voa de um palco para o outro, exprime-se na sua própria língua. E, no entanto, tudo parece perfeitamente claro e transparente. Tudo está iluminado, como num milagre, como numa peça de Tchékhov. Parece que nada nos escapa, de que percebemos tudo, porque a língua do milagre, a língua de Tchékhov, é a grande língua comum, universal, o esperanto da alma e dos sentimentos. Nada mais enganador.

Schöne Welt, wo bist du?

Se a Sally Rooney fosse portuguesa, o João Pedro George já a tinha esfrangalhado (i.e., exposto as fragilidades, o fastio e o tremendo emproamento) nas páginas da Sábado. Podíamos rir um bocado, coisa que as personagens não sabem fazer (nem a própria Sally Rooney, desconfio), e já não se perdia tudo.  Sempre que um livro encaixa nesse conceito foleiro de escrita geracional ou é canalizado, imediata e apressadamente, para as adaptações televisivas, é sinal que o princípio activo da literatura está em falta. Por mais influências sonantes que se apregoem. Aliás, às vezes até são as influências que dão cabo do trabalho (?) (ver o modo como Sally Rooney chegou ao título).

O Contador

Hoje voltei a vê-lo. Quando o metro pára na estação da Lapa, ele percorre a plataforma ao longo das carruagens, espreita pelos vidros e faz anotações num caderno. Não tem tempo para contar as pessoas, por isso calculo que os apontamentos são vagos. Haverá alguma empresa que se interesse por essas informações não exactas? Ou será que ele é um maníaco que trabalha por conta própria?

Anexos sanitários

A arte contemporânea é uma zona sacrificial que absorve todas as correntes envenenadas que aparecem incessantemente e pelas quais toda a gente seria infectada. Pensa-se que é um campo alternativo, mas na realidade é um dos anexos sanitários da cultura de massas, como, por exemplo, uma fábrica com anexos técnicos que asseguram a evacuação das águas contaminadas (...) Parece-me que a a arte contemporânea desempenha exactamente esse papel: as ideias e as imagens potencialmente perigosas são para aí canalizadas, e tudo funciona perfeitamente. É um mecanismo de evacuação, e os artistas ficam com a ilusão de ser uma alternativa, de se opor à cultura de massas, quando na realidade eles são uma função dela, os seus cuidadores. Pavel Pepperstein, citado por Jovan Mrvaljevic, na revista Electra  n.º 14. Tradução de António Guerreiro.

(not me)

O eu mais sofisticado (válido para sentido figurado e pouco usado) é o que escreve no blogue. Pensa que está dentro de um filme realizado por um mestre.  Colocá-lo na terceira pessoa é uma forma espontânea de o tramar.
No mesmo dia em que Rui Rio ganhou as eleições internas do PSD, o filme Distopia , de Tiago Afonso, foi premiado no Porto/Post/Doc.  Os antigos chamavam a estes sinais, augúrios ou auspícios — uma espécie de aviso dos deuses. Mas os políticos deixaram de perscrutar o movimento dos pássaros há muito tempo.

Seis da tarde

Às seis da tarde é quase noite cerrada. O empregado do Vitória baixa discretamente a luz dos candeeiros. Há três gatos pingados a ler na sala que dá para a rua. A esta luz parda de velório, é impossível decifrar as letras no papel. Fecho o livro, pago o café e saio. É a vez da grande sombra pôr os óculos e ler-me a mim: «Era uma vez um fantasma com calças a caminho de casa.»

Two Rode Together

Só agora, ao rever o filme, é que me apercebi que Guthrie McCabe/James Stewart e Jim Gary/Richard Widmark representam John Wayne a meias. (Refiro-me a John Wayne como conceito cinematográfico, o que mexe maravilhosamente a bacia no Pólo Norte .)  Esta ideia também serve para ler o título de outro modo. Se continuar, ainda chego à conclusão que Ford, para além de fazer westerns , também se entretinha a desconstruir personagens e outras actividades meta-ilícitas.