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Mensagens

Tempo para ler

A certa altura do seu diário, Gombrowicz fala de um outro autor polaco, Zbyszewski, que tem uma explicação para a «crise da literatura»: «a literatura não tem hipótese em consequência da crise do sector dos serviços domésticos, pois, por falta de empregadas, as senhoras não têm tempo para ler.» Muito acertado e muito lógico. Mas ainda há esperança. Com os novos e modernos robôs de limpeza, que infelizmente ainda não existiam no tempo de Zbyszewski, as senhoras já podem voltar a ler. Talvez os robôs ainda tenham chegado a tempo de salvar a literatura. Uma proposta de campanha publicitária para os supermercados Fnac: compre um livro e receba grátis um robô de limpeza.
(umbigo magazine)
Nem sei para onde me hei-de virar: a tradução de emmerder , a frase “ sou católico, mas não sou crente, não tenho fé ” ou a hipótese de “ uma noite mal dormida ”.

Exijo que se fale de mim com palavras domingueiras.

Gombrowicz escreve ao «Clube de Discussão de Los Angeles», cuja primeira sessão tinha sido dedicada à obra dele. A carta termina assim: «Dissestes-me que fui objecto da vossa discussão. Pois bem, gostaria de vos perguntar: a minha pessoa foi respeitada? Será que as vossas palavras foram guarnecidas com vibração? Falastes de mim com emoção, imaginação e paixão tal como se deve falar da arte? Ou será que de mim apenas retirastes umas “ideias” minhas e as mordicastes como um osso seco do meu esqueleto? Ficai a saber que proíbo de falar de mim de modo entediante, normal, comum. Proíbo-o veementemente. Exijo que se fale de mim com palavras domingueiras. Castigo com crueldade aqueles que se dão ao luxo de falar de mim de modo entediante e sensato: morro na boca deles e eles ficam com a sua cavidade bucal cheia do meu cadáver.» ( Diário: 1953-1958 . Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.) Devíamos pintar estas palavras a vermelho à entrada das faculdades de letras, dos institutos, das esc

Virar a página

O Presidente da República dirigiu-se ontem ao país para desejar um bom ano. «Este 2022 tem de ser o ano de virar a página», disse. E ainda: das eleições de 30 de Janeiro, deve sair um governo «que possa refazer esperanças ou confianças perdidas ou enfraquecidas, e garantir previsibilidade para as pessoas e os seus projectos de vida». Ocorreu-me, a propósito, a primeira cena do filme de Hong Sang-soo, Dia e Noite . O pintor coreano («pintor de nuvens») acaba de aterrar em Paris onde espera reordenar a vida e, à saída do aeroporto, é abordado por um estranho personagem que lhe atira, em jeito de aviso: «Tenha cuidado, tenha muito cuidado por cá.» São as suas únicas palavras. Sem mais explicações. Depois desaparece.

Quarenta rosas brancas

Longa conversa ao telefone. Cioran vai cada vez mais frequentemente à Suíça por causa dos nervos, mas admite que Paris é uma notável almofada protetora contra a neurose. Tem de seguir um tratamento em Enghien onde, lamenta, só se encontram operários. "Só a si é que posso dizer isto", acrescenta. Lê obras sobre Metternich e Nicolau II. Conta-me uma estranha aventura com uma japonesa que, nos últimos quatro anos, lhe envia regularmente rosas brancas — "noutro dia foram quarenta, pensei que estava no meu funeral" — guloseimas e xailes que ela mesma tricota. Ela quer vir a Paris e ligou-lhe de Tóquio. Ele não gostou da sua voz e proibiu-a de vir a Paris, alegando os terríveis ciúmes de Simone. “Não me vejo a passear com ela nos Jardins de Luxemburgo”, confidencia-me. Ela não devia ter ligado. A voz quebrou a magia das cartas. Ela tem quarenta anos e já foi casada duas vezes. Enviou-lhe uma fotografia sua em fato de banho diante de um lago. Ao longe, adivinha-se o Monte

1 janeiro de 1966

Fui passear junto ao Marne, para os lados de Tribarldon (?). As cheias dão ao rio o aspecto do Mississippi. Cinco horas de marcha quase todo tempo com o vento pela frente. Alegria de me mexer, de me esforçar fisicamente, mas por trás desta alegria sentia a presença de uma melancolia que, a certa altura, quase provocou uma crise de lágrimas. Tudo isso, sem a cumplicidade de nenhum pensamento. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Salas de exposição

Num comunicado recente da DGS sobre as normas de acesso aos equipamentos culturais, os cinemas não se chamam cinemas, mas «salas de exposição cinematográfica» . Podíamos ler mil ensaios sobre o declínio do cinema em sala e em nenhum encontraríamos a clareza e o poder de concisão da DGS.

Evidência material

Por desleixo, nunca levei a cabo a ideia de recolher títulos de notícias menores (a minha versão de filmar um engarrafamento numa rua de Paris). Arrependo-me sempre que vejo um bom exemplar. Hoje foi no JN: Pirotecnia não sabe o que fazer "com tanta pólvora" . É evidente que podiam fazer uma revolução.

Roda da Fortuna e da Fantasia

Não sabia que é necessário certificado e teste para ir ao cinema, por isso voltei para casa um bocado chateada. Mas agora começo a achar graça a esta situação: o filme do Ryûsuke Hamaguchi equiparado a uma ida ao bar ou discoteca, interdito a quem não tem os papéis em dia. Nem preciso de ver o filme e já tenho uma crítica.

Ofício

Ontem à noite vi O Discípulo , de Chaitanya Tamhane. Não é um filme sobre a perfeição ou a «excelência», mas sobre a mediania. E isso impressionou-me. Como é que um artista mergulhado até à obsessão na sua arte suporta a evidência de que nunca será excepcional? E estando mais ou menos conscientes disso, o que leva os artistas medíocres ou medianos, que são quase todos, a devorarem-se uns aos outros, como peixes de dentes afiados num lago turvo, movidos pela inveja e o ressentimento? Como escapar a tudo isto? Como ser honesto? Desistir é um acto de coragem ou de cobardia? E ao contrário: um artista verdadeiramente excepcional pode ser imune a concessões, mentiras, mitificações? De onde vêm os raríssimos génios? Que mistério é este?
Se a palavra noël fosse japonesa, os pontinhos sobre o “e” eram gotas de chuva.

Cismar

(...) Naquele tempo, ainda se usava um sinónimo ligeiramente depreciativo do verbo «pensar»: de acordo com a avó, que já não vivia noutro continente, a mãe passava o tempo a «cismar». É um verbo que aparece nos poemas de Florbela Espanca. Cismar é o que acontece quando o pensamento não vai a lado nenhum. Em vez de progredir, o pensamento repisa e repete, sem conseguir avançar. Quem cisma não encontra o que não perdeu, mas continua a insistir. Se pensar é procurar coisas que não sabemos que estão lá, cismar é procurar coisas que sabemos onde estão.(...)

Cem anos depois

No noticiário da rádio, ouço um tipo a comentar as últimas informações sobre a possível transferência do treinador do Benfica para o Flamengo, do Brasil. O tipo não se cansa de repetir que «tudo isto é surreal». «É uma história surrealista!» «É surreal!» «É surreal!»  Como é que se chegou aqui? Como é que uma palavra de fogo se transformou numa coisa desprovida de peso e significado, usada apenas para embrulhar conversa fiada, frases balofas, peixe podre?

Early life

Concordo com George Saunders quando diz: Kushner é uma jovem mestre. Não entendo como sabe tanto e consegue passar esse conhecimento para os seus livros de uma forma tão interessante.   Mas acho que aquilo do não entendo como é retórica. Basta espreitar a página da Wikipédia da Kushner para entender alguma coisa, basta até o primeiro parágrafo:  Kushner was born in Eugene, Oregon, the daughter of two Communist scientists, one Jewish and one Unitarian, whom she has called "deeply unconventional people from the beatnik generation." Her mother arranged after-school work for her straightening and alphabetizing books at a feminist bookstore when she was 5 years old (...).

Uma pequenina luz

O Natal atira-me para um estado de aguda melancolia. Não sei explicar. Ou melhor, sei. Claro que sei. Há demasiadas luzes a cintilar, bonecos de neve nas janelas, Pais Natais a pilhas e duendes a agitar as ancas de plástico, Frank Sinatra e Bing Crosby aos abraços pelas ruas, a árvore de 34 metros de altura por 15 metros de largura na praça, mil paisagens nevadas dos alpes suíços em mil montras de lojas de pronto-a-vestir. E não há uma única luz a cintilar dentro de mim. «Uma pequenina luz bruxuleante. Une toute petite lumière, just a little light, una picolla…» Nada. Gosto de rabanadas, apenas isso.

you make my heart sing

Reactivei as idas à Biblioteca Almeida Garrett (onde, confirmei mais uma vez cheia de vaidade e surpresa, sou reconhecida pelo nome). Para festejar o evento, trouxe Emmanuel Bove traduzido por Manuel Resende e Rachel Kushner traduzida José Miguel Silva. É um alegria pegada, não consigo perceber de qual dos quatro gosto mais.

Wild thing,

Paulo Nozolino, Pedro Costa e Rui Chafes no Centro Pompidou em 2022 parece o anúncio de um concerto. Precisavam de uma vocalista. Talvez a Flannery O’Connor — vestida de couro preto.