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Mensagens

Conjugação favorável

Uma criança recostada num carrinho a roer uma bolacha — é a imagem máxima de segurança. O carro que nos protege (do frio, da chuva, do mundo) e retira o peso, a proximidade dos pais, a comida. A partir daí é sempre a descer — nunca mais teremos esta conjugação favorável.

Branco e preto

Estava a subir as escadas rolantes do metro do Campo 24 de Agosto, talvez demasiado cansada para pensar, quando percebi que “sim” corresponde ao branco da neve de Walser e “não” corresponde ao negro da Branca de Neve de João César Monteiro. Traduções exactas cada uma delas. A mesma origem, caminhos diametralmente opostos e, no entanto, são — continuam a ser — as duas a mesma coisa.  Também no mundo das cores e das palavras vigora o princípio da incerteza.

O que se mostra e o que se esconde

Uma cena de Il Cristo Proibito , de Curzio Malaparte. O cenário é uma farmácia numa aldeia da Toscana, poucos anos após o fim da segunda guerra. Pendurado na parede da loja, à vista de todos, um retrato de Estaline. O velho farmacêutico lança-lhe um olhar de esguelha, meio indiferente. Depois, avança para uma sala interior, na zona privada da loja. Abre um armário. Na porta, escondido pelo lado de dentro, há um retrato de Mussolini. O farmacêutico ergue-se, solene, diante do retrato. Faz a saudação romana. Volta a fechar o armário.

E que futuro

Visão de desabamentos. É nisto que vivo de manhã à noite. Tenho todas as enfermidades de um profeta, não os dons.  E, no entanto, sei — com um saber impetuoso, irresistível — que possuo senão luzes, em todo caso lampejos sobre o futuro. E que futuro, Deus do céu!  Sinto-me contemporâneo de todos os pavores futuros.  A minha grande predilecção pelos naufrágios. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Arte ampliada

Para tentar compreender a escultura, costumo observar a resistência e deterioração dos materiais que encontro na rua — um ponto de vista exterior ao processo, claro, com todas as insuficiências e erros que isso acarreta. Mas hoje, sentada na cadeira do dentista, fiquei do outro lado, do lado da matéria, a observar o modo de operação do escultor; e percebi qualquer coisa. A energia que é necessária — a violência? 

Os mortos

É impossível fixar a idade dos mortos. Quando morrem, as pessoas libertam-se dos anos. A nossa memória pode chamá-los em qualquer altura do seu passado e eles surgem como eram então — com a integridade dos vivos. Talvez esta seja a característica mais perturbadora dos mortos.

Memorabilia de cinema

Fomos ao Campo Alegre rever o Conto de Primavera . No regresso, junto aos contentores do lixo, à entrada da Rua do Gólgota, estavam três cadeiras (uma delas partida), uma cama com as peças separadas, um colchão, duas mesas de cabeceira (sem puxadores nas gavetas) e uma cómoda. Parecia um dos cenários do filme, desmontado e descartado. Trouxemos as cadeiras que estavam prestáveis. Vamos chamar-lhes as cadeiras Éric Rohmer.

Persona non grata

Quando estou a trabalhar nas traduções de Cioran, faço muitas pesquisas para perceber melhor o que ele quer dizer e para tentar encontrar formulações vulgares que estejam de acordo com os seus pensamentos. Isso implica muito mais do que consultar dicionários. Muitas vezes vou dar a sites religiosos ou místicos. Gostava de saber como é que a Google interpreta estas movimentações, quer dizer, o que é que acham que me podem vender.

Notas de tradução

Num dos livros mais bem traduzidos que conheço, refiro-me a  As Variedades da Experiência Religiosa de [William] James, encontrei apenas uma coisa duvidosa: “os abismos do cepticismo” ... Devia ser da dúvida , pois em francês o cepticismo contém uma nuance de diletantismo e de ligeireza que exclui qualquer associação com “abismo”. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Decoração de Interiores

Por causa da gata — miúda e irrequieta —, tivemos de tirar da sala tudo que lhe serve de brinquedo e colocar umas caixas de cartão a impedir o acesso a fios eléctricos. Parece que vamos fazer obras em casa ou estamos de saída. Nunca este espaço refletiu tão bem o nosso tempo e o nosso interior.

Objectos herméticos

O filme estava mal indexado, comecei a vê-lo na cena em que um tipo sai da mala do carro americano de Alain Delon. Achei o início tão selvagem e audaz que nem dei pela falta do genérico. Só quando me chamaram a atenção é que percebi que faltavam mais de trinta minutos com informações cruciais sobre personagens e objectivos (tralha narrativa?). O filme completo também é bom (abre com uma citação falsa sobre Buda, segue os princípios austeros do cinematógrafo, etc, etc.), mas prefiro a versão diminuída — tenho um fraquinho por objectos herméticos.

Ultrapassagem

Ontem à noite vi A Ultrapassagem , de Dino Risi, na televisão. É um filme notável sobre um diabo e um jovem Fausto a voarem num descapotável, pelas estradas de Itália, a 120 km/h. Alguma moral a reter nesta história? Nenhuma. O diabo e o jovem, Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant, assumem os seus papéis sem subterfúgios nem equívocos. Conhecem-se desde o princípio dos tempos. Um produz magias, o outro paga para ver.

Ruínas

O dentista desvitalizou o dente que me doía há semanas. Arrancou-lhe o nervo pela raiz. Ficou esta ruína útil no meio dos molares. Vão-se acumulando assim as ruínas no meu corpo. Uma após outra. Lenta, silenciosa arqueologia.

Modelos

Ao sair de casa, resolvi imitar o Alain Delon: apertei o cinto da gabardine bege e repeti aquele jeito que ele faz aos ombros. Não somos parecidos, nem sequer tenho um carro americano, mas sou tão calada como ele nos filmes do Melville. Já é qualquer coisa.

Fork

This strange thing must have crept  Right out of hell.  It resembles a bird’s foot  Worn around the cannibal’s neck.  As you hold it in your hand,  As you stab with it into a piece of meat, It is possible to imagine the rest of the bird:  Its head which like your fist  Is large, bald, beakless, and blind.  Charles Simic, Selected Early Poems (George Braziller Inc., 1999)