Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

Chamada

No Largo de Mompilher, junto à esplanada do Candelabro, resta ainda uma cabina telefónica de estilo inglês. Os turistas que passam, sorriem como se reconhecessem um velho parente desaparecido, tiram fotografias com o telemóvel e seguem caminho. De vez em quando, um turista entra na cabina, tira o telefone do descanso e faz uma pose como se estivesse numa chamada. Do outro lado da linha, imagino um fantasma cansado, que repete, lenta e vagamente: — É engano. Ligou para o número errado.

Cadernos

Nas esplanadas, há sempre um ou outro turista a escrever em caderninhos. Na mesa ao lado, estão duas raparigas a escreverem nos respectivos caderninhos. O que escreverão elas? Também escrevo em caderninhos. Estou justamente a escrever isto num caderninho semelhante ao das raparigas que estão na mesa ao lado. E quando não estou no Porto, também escrevo. Nos lugares onde sou turista, farão a mesma pergunta a meu respeito? «O que estará aquele tipo a escrever no caderninho?» Talvez as raparigas estejam a escrever exactamente isto no caderninho delas.

O mar

Há uns anos, não era Abril, mas Agosto. Era o mais cruel dos meses. A cidade parecia uma longa e interminável tarde de domingo. As ruas desertas, os cafés fechados. Tudo fechado, excepto as farmácias e os supermercados. Não havia esplanadas. Não havia cinema, muito menos teatro. Os dias arrastavam-se sob o calor. Nas praias, a nortada varria toalhas, guarda-sóis, sacos de plástico — isso não mudou. Agora, a cidade está a rebentar de turistas. Ao fim da tarde, depois do trabalho, descemos até à Baixa no meio da corrente. Na esplanada do Candelabro, observamos distraídos o movimento das vagas. Maré alta e maré baixa, maré alta e maré baixa. Enquanto as gaivotas lançam os seus anzóis de cima dos telhados.

Um momento de expectativa

Segundo os meus parâmetros , os cartazes da exposição de Rui Chafes em Serralves convertem o escultor em filósofo — filósofo da matéria, digamos assim.

Prova incriminatória

Há apenas três referências ao tango nos Cadernos e mais uma no pequeno Caderno de Talamanca , mas que não restem dúvidas quanto à importância do tango para Emil Cioran — como experiência musical mas, principalmente, como estado de alma.  Se isto fosse um caso de polícia e quisesse provar a relação entre os dois, bastava contar as vezes que Ramón Gómez de la Serna usa a palavra “desengano” — crucial no pensamento e na vida de Cioran — na sua “Interpretação do Tango”.

Condições materiais da luta de classes

Foi ao ler o livro do Ramón Gómez de la Serna sobre o tango que me dei conta da importância transversal dos tacões nos comportamentos sociais. Por experiência própria já me tinha apercebido da necessidade de usar tacões (bastam sete centímetros) nos confrontos laborais — infelizmente nem os sindicatos nem os partidos de esquerda informam as trabalhadoras desta vantagem material que nos permite olhar de cima (e com algum desdém) o patronato. No fundo, trata-se de uma prática cultural — de fácil alcance, diga-se — de hostilidade ao capital e à sua acumulação.

Tango del desengaño

Gostava de ter vivido entre povos tristes, ou pelo menos cuja música é langorosa ou pungente: fado, tango, lamentos árabes, húngaros... ( Cadernos , junho de 1963 )  Ibiza, 1 de agosto. No ano passado, F. emprestou-me o seu gira-discos e ouvi um disco que me encantou. Era um tango espanhol, do mais dilacerante que há. De volta a Paris, tentei lembrar-me do ritmo e da melodia. Impossível. Um ano depois, encontro-me de novo na mesma casa. No dia seguinte à minha chegada, durante a sesta, tenho um sonho no qual escuto um tango. Ao despertar, tinha reencontrado o meu tango. ( Caderno de Talamanca , agosto de 1966 )  Borges escreveu um poema sobre o tango. Como eu o compreendo. Tenho vontade de exclamar: «Dêem-me um tango por dia!» Trago em mim uma Argentina secreta. ( Cadernos,  outubro de 1966 )  A tristeza impetuosa em todos os níveis, do tango ao Apocalipse. É esse o meu clima habitual. ( Cadernos,  fevereiro de 1969 ) 

Aqui não existem essas queixas

Mais um artigo no jornal sobre os problemas do ruído nas zonas de animação nocturna de Lisboa e do Porto. Em Lisboa, os moradores têm-se unido para exigirem soluções à câmara. No Porto, é mais simples: não há problema porque já não há moradores: [Para Rui Pereira, proprietário do Café Santiago da Praça, no Porto], a questão do ruído é «pertinente» e deve ser medida. Porém, argumenta que «no centro da cidade não é de facto um problema, porque a habitação permanente tem vindo a diminuir. Existe muita habitação, mas são alojamentos locais e são pessoas que de certa maneira já vêm preparadas para a animação, portanto, aqui não existem essas queixas». Jornal Público , 31 de Julho de 2022.

A seita dos tanguistas

O tango é uma espora com a qual o homem se fere a si mesmo, é uma dança de passo cauteloso e retorcido, gestual com os gestos da sedução animal que, dentro da própria dança, vai urdindo a sua teia com a qual manieta a mulher que quer escapar à sua influência. O verdadeiro tango dançado é um tango de garatuja, pernalta e corcunda, insistente e humilde, em que as calças são acordeões que se dobram e desdobram e por fim se encavalitam num passo requintado. Um inglês disse que era uma declaração de amor feita com os pés e alguém mais atrevido que «era fazer a dançar aquilo que os outros fazem deitados». Uma senhora inglesa, em contrapartida, ao ver dançar um tango perguntou se se tratava de uma seita religiosa. Interpretação do Tango,  de Ramón Gómez de la Serna. Tradução de Sofia Castro Rodrigues. VS editor. 2022.

Temos toda a informação necessária para compreender a escala do desastre que nos espera

No jornal de ontem, uma entrevista com Joshua Yaffa sobre o regime de Putin. P: Como se justifica que, além de as nações ocidentais não terem travado Putin desde que assumiu a Presidência da Rússia, em 2000, tenham reconhecido e normalizado o poder do Kremlin, quando existia toda a informação para prever uma escalada da violência? R: Interesses, falta de imaginação para compreender a natureza tanto do indivíduo como do sistema que representa, e o potencial desse sistema, as suas ambições. Eram coisas difíceis de imaginar antes de acontecerem. E não é apenas em questões de geopolítica, pensemos nas alterações climáticas. Neste momento temos toda a informação necessária para compreender a escala do desastre que nos espera, mas ainda é muito difícil impor medidas para o contrariar. *** Na Hungria, o primeiro-ministro declarou há poucos dias que os húngaros não devem tornar-se numa «raça mista». Na sequência dessa declaração, Zsuzsa Hegedus, assessora de Viktor Orbán, apresentou a demissã

Degraus

Se tivesse unhas, escreveria um ensaio sobre o papel e o lugar das escadas nos filmes de John Cassavetes. Contaria e descreveria o número de sequências em que os personagens sobem e descem escadas. São inúmeras e sempre importantes. Dois exemplos entre muitos: as escadas que separam os dois andares da casa da família Longhetti em Uma Mulher Sob Influência (1974); e as escadas que separam os bastidores e o palco do bar em  A Morte de um Apostador Chinês (1976). Uso a palavra «separam» de propósito. É que as escadas nos filmes de Cassavetes são passagens estreitas, difíceis de subir e descer. Exigem um enorme esforço físico e mental. São fronteiras que rapidamente convertem cada personagem num estrangeiro dentro da sua própria história.

Fumar / Não Fumar

 

Fiat Tenebrae

Ao longo dos tempos, e por causa dos vincos que a bíblia deixa na nossa vida, o acto e as consequências de fazer-se luz têm sido exagerados. Nem sempre é pelo esclarecimento que se compreende o obscuro ou duvidoso. Muitas vezes, é precisamente do oposto que precisamos: que caia uma sombra ainda mais profunda sobre aquilo que não sabemos para, talvez assim, chegar a perceber alguma coisa. Mesmo que isso não nos dê a capacidade de explicar, apenas um espanto — mas um espanto carregado de intuições. Se calhar era isto que a psicanálise procurava.

Questionários de Verão

Gosto de ler os questionários de férias dos jornais. É o tipo de coisas que só se publicam no Verão. É como se o tempo arrastado e indolente da estação fosse mais propício ao confessionalismo. A ideia é simples: os entrevistados têm mais disponibilidade e menos pressão para pensar nas respostas e, por isso, podem ser mais autênticos e genuínos. Mas é exactamente por esse motivo que as respostas são tudo menos autênticas e genuínas. Os questionários são uma espécie de exercício proto-literário, mais próximo da ficção do que qualquer outro texto do jornal. O que o leitor avalia não é a autenticidade, mas a destreza inventiva do entrevistado. E, claro, lendo a maioria das respostas, a verdade deve ser bastante mais interessante do que a ficção.

Que chalaceiro me saíste!

N’ O Mercador de Veneza há uma cena que corresponde mais ou menos ao desenvolvimento teatral do «queria, já não quer» dos empregados de café espertalhões. Talvez não seja a situação mais moderna, quer dizer clássica, quer dizer moderna, da agitadíssima peça, mas mostra bem, por comparação negativa, como a literatura contemporânea se desliga constantemente da possibilidade de humor linguístico da realidade mais comezinha, e prefere meter-se em enfados de gabinete sem brilho nem chiste.  Mas vamos então à cena (na melodiosa tradução de Daniel Jonas ): em Belmonte, Lancelote informa Jessica que, por mais voltas que dê à sua vida, está tramada. Nisto, entra Lorenzo.  Jessica: Vou dizer ao meu marido o que me disseste, Lancelote: aqui vem ele.  Lorenzo: Não tarda vou ficar com ciúmes, Lancelote, se continuas a andar com a minha mulher por sítios recônditos.  Jessica: Não, não tendes de temer por nós, Lorenzo: Lancelote e eu estamos desavindos. Diz-me a seco que não há mise

Mentira

O regime totalitário está essencialmente ligado à mentira. A tal ponto que nunca se mentiu tanto em França como desde o dia em que, inaugurando a evolução para um regime totalitário, o marechal Pétain proclamou: «Odeio a mentira.» Alexandre Koyré, Reflexões sobre a Mentira . Tradução de Diogo Paiva.

Servos

Leio no Fragmento XXI de A Amizade , de Simone Weil: «O pastor é servo das ovelhas.» Sigo um daqueles rastros deixados na memória e regresso a Un Chant d'Amour , do Genet. Também o polícia da prisão é servo do seu desejo solitário e oculto. Prisioneiro de si próprio, da sua carne, procurando desesperadamente uma saída. É o menos livre dos personagens.
A Iris de Alcarràs é da mesma têmpera do Bogey do Rio Sagrado . Miúdos que são como o vento.