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Que chalaceiro me saíste!

N’ O Mercador de Veneza há uma cena que corresponde mais ou menos ao desenvolvimento teatral do «queria, já não quer» dos empregados de café espertalhões. Talvez não seja a situação mais moderna, quer dizer clássica, quer dizer moderna, da agitadíssima peça, mas mostra bem, por comparação negativa, como a literatura contemporânea se desliga constantemente da possibilidade de humor linguístico da realidade mais comezinha, e prefere meter-se em enfados de gabinete sem brilho nem chiste. 

Mas vamos então à cena (na melodiosa tradução de Daniel Jonas): em Belmonte, Lancelote informa Jessica que, por mais voltas que dê à sua vida, está tramada. Nisto, entra Lorenzo. 

Jessica: Vou dizer ao meu marido o que me disseste, Lancelote: aqui vem ele. 

Lorenzo: Não tarda vou ficar com ciúmes, Lancelote, se continuas a andar com a minha mulher por sítios recônditos. 

Jessica: Não, não tendes de temer por nós, Lorenzo: Lancelote e eu estamos desavindos. Diz-me a seco que não há misericórdia para mim no céu, por ser filha de um judeu; e diz que não servis a sociedade, já que ao converterdes judeus em cristãos contribuís para a subida do preço do porco. 

Lorenzo: Hei-de responder melhor à sociedade por isso do que tu pelo aparelhamento da moura: a magrebina leva uma criança tua, Lancelote. 
 
Lancelote: Engano. É só que a magrebina de magra não tem nada; e quanto a respeitos então nem falar. É respeito a mais para tão pouca reputação. 

Lorenzo: Veja-se como qualquer tolo pode brilhar em trocadilhos! Dá-me ideia de que o melhor génio humorístico, não tarda, residirá no silêncio, e o discurso só se recomendará a papagaios. Vamos lá, senhor, diz-lhes que se preparem para o jantar. 

Lancelote: Feito está, senhor; eles são todos estômagos. 

Lorenzo: Senhor dos céus, que chalaceiro me saíste tu! Então diz-lhes que preparem o jantar.  

Lancelote: Feito está também, senhor; «servi-lo», quereis vós dizer. 

Lorenzo: Quero. Serves? 

Lancelote: Com certeza, para alguma coisa sirvo; conheço as minhas funções. 

Lorenzo: E o homem continua! Vais esbanjar a riqueza do teu génio de uma só vez? Peço-te, toma o que um homem simples te diz como simples: vai lá ter com os teus, diz-lhes que ponham a mesa, sirvam o jantar, e nós lá nos acomodaremos. 

Lancelote: Para a mesa, senhor, será servido; para o jantar, senhor, será posta; quanto a acomodar-vos isso lá será de acordo com os vossos humores e caprichos.

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