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Mensagens

Pathos

Estão três pessoas na sala. O filme começa com três vozes em off a narrarem uma versão alternativa do mito cristão da criação. Não há imagem, apenas as vozes, o verbo. A imagem entra em fade um pouco mais tarde. No exacto momento em que a imagem surge na tela, o filme encrava. O projeccionista repete três vezes o início do filme e três vezes o computador ou o disco encravam. A sessão é cancelada. A obra chama-se Pathos . A primeira parte da trilogia de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, Pathos Ethos Logos . O título fez-se carne.

Fazer aparecer a imagem

A forma perfeita como Violet descreve o mundo ao seu marido cego, no conto As Mulheres do Afinador de Pianos , é idêntica à forma como William Trevor escreve.  Este procedimento atinge o auge na cena que antecede as revelações em Depois da Chuva .  Aliás, suspeito que as revelações só acontecem porque as descrições do quadro A Anunciação  e das videiras são exactas.  Se continuar, ainda acabo por encontrar nestas passagens uma definição de tradução.  É assim que a aranha trabalha.

Conselho à nação

Perguntaram a uma mulher que vivia no campo se o inverno tinha sido muito frio. «Não muito», respondeu. Depois acrescentou: «Houve apenas três ou quatro dias em que tivemos que ficar na cama para nos mantermos quentes». John Cage, indeterminacy #92

Stalker

É mais ou menos a meio do filme. O stalker, o professor e o escritor estão no coração da Zona e a poucos metros do edifício em cujo interior se encontra o «quarto», esse local secreto onde os desejos mais íntimos podem milagrosamente realizar-se. O stalker explica que para lá chegarem não podem optar pelo caminho mais curto e seguirem em linha recta até ao edifício. Pelo contrário, têm que escolher o itinerário mais longo, andando às voltas, como num labirinto. O professor, homem da razão, da técnica e da ciência, aceita e respeita o absurdo da regra do stalker. O escritor, homem da ficção e da fantasia, recusa. É uma rasteira simples, mas espantosa de Tarkovsky.

Premonição

Só quando cheguei a casa é que reparei que dois dos livros, apesar de tão afastados entre si, são de índole meteorológica: Geada e Depois da Chuva . Vai ser um inverno rigoroso.

Ia ser feliz

Muitas vezes um homem desordenado que vai morrer e o pressente, organiza as coisas à sua volta. A sua vida modifica-se. Arruma papéis. Levanta-se cedo, deita-se a horas. Renuncia aos seus vícios. Os que o rodeiam, felicitam-se... A sua morte brutal parecerá por isso ainda mais injusta. Ia ser feliz. Raymond Radiguet, O Diabo no Corpo .

Disneylândia

Oito da manhã. Ligo a rádio para ouvir o noticiário. O jornalista dispara: «Marques Mendes considera…», «Marques Mendes entende…», «Marques Mendes pensa…», «Marques Mendes observa…» A peça termina ao fim de uns penosos dez minutos, mas a imaginação continua: «o Rato Mickey opina…», «o Pato Donald avalia…», «o Tio Patinhas reputa…»

Rentrée

Sou e mereço ser esquecido. Há um limite para a indolência. Só tenho dois prazeres, não mais que dois interesses: ler e comer. Um animal-leitor, uma besta com livros. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Avarias

Tenho sentido umas tonturas estranhas. No Centro de Saúde, a médica prescreveu-me uma TAC de Crânio para «despistar qualquer problema». Fui fazer o exame. A máquina da TAC avariou no exacto momento em que estava deitado e com a cabeça no interior daquele enorme círculo de metal e radiação. O técnico lamentou, disse que o exame tinha de ser adiado e que entretanto iam chamar o serviço de assistência para «despistar qualquer problema».

cette vie dont j’avais soif

Cioran escreve muitas vezes sobre Teresa de Ávila nos seus Cadernos . Começo a compreender o encanto; aliás, é melhor dizer feitiço .  Ela é uma mulher devota a Deus, mas com um misticismo fogoso — a imagem corporal que se insinua na nossa cabeça para dizer aquelas coisas intensas é de uma actriz de Hollywood dos anos 50. Je me voyais mourir du désir de voir Dieu et je ne savais où je devais chercher cette vie dont j’avais soif, si ce n’est dans la mort même . Nota: será que Bénard da Costa escreveu sobre isto? É um tema tão perversamente bénardiano (ou será buñueliano?).

Pensamentos de dupla face

L'homme n'est qu'un roseau, le plus faible de la nature, mais c'est un roseau pensant.  A frase de Pascal é tão boa que se pode ler nos dois sentidos; conforme o filósofo a escreveu, mas também na direção inversa, considerando a condição pensante do homem como axioma, e ser junco como vontade.  Podia ser um dos segredos da escrita — ou até mesmo da vida — de Walser.

Ficção Científica

Ontem, ao fim da tarde, uma nuvem cinzenta desceu fria e lentamente sobre o Porto como um avião colossal. Demos por nós atónitos, à janela, a olhar para o céu. Depois de várias semanas de sol e temperaturas tropicais, a nuvem assemelhou-se a um estranho episódio de ficção científica.

Outono no Porto

No fim-de-semana fui ver a paragem ao contrário na rua de São Dinis ; ri-me imenso. Hoje descobri que já tenho um desses equipamentos urbanos perto de casa (Barros Lima, sentido descendente) — que alegria!    Estas paragens são muito divertidas porque são uma aberração de gabinete; quer dizer, quem teve a ideia de as virar ao contrário (as justificações não colam) não anda na rua nem em transportes públicos, vive em ambiente condicionado.  Agora fico à espera que contratem os autocarros negativos de Boris Vian. Aliás, espero isso há tantos anos...

Sentir-se satisfeito

Em O Vestido Vermelho , de Stig Dagerman, um personagem descreve desta maneira o ramerrame de uma vida vazia, mole, pobre e mesquinha: Que é que julgas que significa viver, para ele? Nada mais que levantar-se de manhã, ler um jornal, tomar uma chávena de café, ir para a oficina, consertar uma mesa, voltar para casa, jantar, dormitar, escutar a telefonia, ir ao W.C., contar uma história das porcas, de preferência, sair, ir ao cinema, ir para a cama ou para o café, ver um filme, despir uma mulher ou beber uma cerveja, voltar para casa, despir-se, ressonar, acordar, tomar uma chávena de café, ler um jornal e ir para o trabalho. O pior ainda não é supor que viver seja isto, o pior numa vida destas é ele sentir-se satisfeito. O livro é de 1948. Hoje, parece a vida preenchida e sofisticada de um «intelectual» mais ou menos boémio, e que trabalha numa oficina para pagar as contas.

Noite de Talamanca

(...) O misticismo e o «desengano» constituem também o leitmotiv do Caderno de Talamanca , assim como a paixão pela música.  Este Caderno foi escrito durante o verão de 1966 em Talamanca, uma povoação situada na ilha de Ibiza. É o testemunho de uma crise, uma crise de tal intensidade, que nos  Cadernos posteriores será referida como Noite de Talamanca .  Verena von der Heyden‑Rynsch, prefácio a Caderno de Talamanca.