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Mensagens

A paz social

Leio nos jornais que a paz social está ameaçada pela onda de greves que aí vem. Leio de novo: «A paz social está ameaçada.» É como se de repente os mortos ameaçassem erguer-se das profundezas das fábricas e dos escritórios, e desatassem a partir as montras dos supermercados e dos bancos. Uma onda imparável. Finalmente.

Lágrimas e Santos

Restaurante Lacrimi și Sfinți . Strada Șepcari 16, București.

O segundo nascimento de Cioran

Ao passar, há mais de trinta anos, do romeno para o francês, Cioran fez mais do que mudar de idioma; converteu-se noutro escritor, noutro pensador.  Tendo sido educado em Sibiu, situada na região saxónica, o jovem Cioran conhecia o alemão tão bem como todos os transilvanos cultos. Foi apenas muito tardiamente, no contacto com o mundo intelectual de Bucareste onde frequentou a universidade, que se familiarizou com a língua francesa. Aliás, será que se teria transformado num escritor francês sem as circunstâncias históricas e políticas que separaram as duas partes da Europa depois da guerra? Podemos perguntar-nos isso uma vez que sabemos que à sua chegada a França, deixou para trás não menos que seis livros escritos entre 1930 e 1940, dos quais o primeiro, Nos Cumes do Desespero conquistou o grande prémio da Academia Royale dedicado aos jovens autores em 1934! Surpreendido pela guerra em Paris em 1940, ficou em França a fim de cumprir aí o seu verdadeiro destino — quase um destino romen

Tudo o que pretende é descansar

Num quarto duma casa de prostituição Berta chega ao último degrau da miséria e da doença. Mentalmente transtornada não sabe que fazer nem para onde ir. Tudo o que pretende é descansar, continuar deitada naquela cama onde jaz há alguns dias, antes de voltar para o trabalho. A acção limita-se ao diálogo travado com outras senhoras do mesmo meio: Goldie e Lena. A peça, em 1 acto, termina bruscamente (no presente original parece mesmo estar incompleta). É difícil, e neste momento desnecessário, discorrer sobre tão educativa obra de Tennessee Williams, traduzida pelo ilustre comediógrafo Luís Francisco Rebelo, e que a Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul pretende levar à cena. Reprova-se. 10-IV-61 Relatório do censor Alambre dos Santos sobre a peça Saudades da Berta , que a Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul queria levar à cena em 1961. Citado por Eugénia Vasques em Tennessee Williams e a Censura em Portugal (1956-1972) .

Correspondências misteriosas

O Oráculo Portátil de Baltasar Gracián lembra, pelo tom, o Tao Te King . Mas é possível que entre estes dois livrinhos haja analogias mais profundas, correspondências misteriosas. É uma ilusão da minha parte? Ou trata-se de uma impressão legítima? A verificar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Vida eterna

Mais uma Cimeira do Clima, a edição 27. Os negacionistas das alterações climáticas são já uma espécie em vias de extinção. O apocalipse é certo para todos. E enquanto desfazemos o nosso mundo aos bocados, continuamos a sonhar com a vida eterna. Aqui, no meio da pestilenta fila de trânsito, na lua ou num qualquer canto da via láctea.
Simone Boué : (…) Anos mais tarde, Sanda Stolojan começou a traduzir Lágrimas e Santos  e vinha com muita frequência cá a casa, trazia o seu texto. Cioran exigia que eu estivesse presente, e eu, eu estava muito infeliz porque embora normalmente Cioran fosse simpático, afável, cortês, quando se tratava da escrita, de um texto, já não tinha essa gentileza. Dizia: é preciso cortar, isto não presta. Lembro-me de  Sanda a chegar, entrava e perguntava: «que mais vai cortar hoje»? Parece que a versão francesa de Lágrimas e Santos representa cerca de um terço do texto romeno. Sanda escreveu um prefácio para se defender, e Cioran decidiu reescrever algumas páginas, de modo a não termos a impressão de ler um texto traduzido do romeno; é principalmente o escritor francês que encontramos nesta versão. Recentemente, li a tradução em inglês e fiquei impressionada, o inglês presta-se mais à tradução do romeno, é menos rígido, e depois há essa profusão, esse lado barroco do estilo de Cioran em romeno

Activos intangíveis

Na semana passada, um molho de grelos custava na 1,5€. Hoje, o valor disparou para 2,20€. A banca de hortaliças parece a bolsa de valores onde vamos para fazer um bom negócio ou dar mais um passo na nossa falência.

O abeto

Assim como alguns se lembram de forma precisa da data do seu primeiro ataque de asma, eu posso indicar o momento do meu primeiro acesso de tédio aos cinco anos. Mas para quê? Sempre me entediei muito. Lembro-me de certas tardes em Sibiu; quando estava sozinho em casa, atirava-me para o chão sob o efeito de um vazio intolerável. Era adolescente, o que quer dizer que vivia mais intensamente os humores negros que por vezes enlutavam a minha infância feliz. Terrível tédio generalizado , em Berlim, em Dresden sobretudo, depois em Paris, sem esquecer o meu ano em Brasov quando escrevi Lacrimi si Sfinti —  Jenny Acterian disse-me que era o livro mais triste já escrito.  Neva. Penso naquele inverno (1937?) quando escrevia Lacrimi si Sfinti em Brasov — bem no alto da colina (Livada Postii) de onde tinha vista para as montanhas. Que solidão! Foi o ponto culminante da minha carreira de aborto elegíaco.  De novo esta vontade de chorar que experimentei em Brasov, quando escrevia Lacrimi si Sfinti

Bordéis e museus

Nada me parece assemelhar-se tanto a um bordel como um museu. Lá se encontra o mesmo aspecto equívoco e petrificado. Num, as Vénus, as Judites, as Susanas, as Junos, as Lucrécias, as Salomés e outras heroínas, em belas imagens imobilizadas; no outro, mulheres vivas, com os seus trajos tradicionais, com os seus gestos, a sua linguagem e os seus hábitos completamente estereotipados. Em qualquer destes lugares, estamos, de certa maneira, sob o signo da arqueologia; e se gostei durante muito tempo de bordéis é porque eles próprios têm que ver com a antiguidade, pela sua faceta de mercado de escravos e de prostituição ritual. Michel Leiris, Idade de homem . Tradução de Maria Helena e Manuel Gusmão.

Dia de todos os santos

Como Sanda Stolojan explica no prefácio, as lágrimas são uma presença constante na escrita de Cioran. Mais do que um fluido fisiológico, respondem a uma dor profunda e antiga — remontam a muito antes do seu nascimento nos Cárpatos, atrevo-me até a dizer que surgiram com o pecado original. Cioran transporta esse mal-estar primordial e essas lágrimas obsessivas como um fardo histórico mas também como alento (?) para pensar o desespero da condição humana. Em relação aos santos, importa fazer o mesmo exercício de abstracção e recuo: se as lágrimas são a consequência de uma tristeza constante colada à pele, os santos vêm de um sentimento religioso vigoroso mas sem destino; integram no seu âmago simultaneamente um desejo intenso (ou uma saudade?) de ligação a qualquer coisa, como é da sua natureza, e uma solidão sem saída — que desatino! Apesar do que escreve a tradutora e também o filósofo (quando se refere a Lágrimas e Santos, Cioran gosta de sublinhar que as lágrimas ocupam um e

Ideia de uma amiga

Para cada Escola Superior, devia existir também uma Escola Inferior. Uma Escola Superior de Cinema e uma Escola Inferior de Cinema. Uma Escola Superior de Belas Artes e a sua congénere, a Escola Inferior de Belas Artes. Uma Escola Inferior de Saúde, uma Escola Inferior de Biotecnologia, de Comunicação Social, de Teatro, de Hotelaria, de Dança, de Design, e por aí fora. Com que propósito? Ainda não sei. Mas é uma excelente ideia.

Mise-en-scène

Os tacões são importantes, mas o que conta mesmo para ganhar uma discussão com o patronato em que nos tentam encostar à parede com ardis sonsos, é ter lido Michael Kohlhaas, Antígona, e outros livros do género combativo; ter aprendido com Straub e Huillet uma entoação de voz vigorosa e movimentos do corpo leves e decididos. E já agora, também devo a Cioran a escolha das palavras mais destemidas e violentas. No fundo, são eles o meu sindicato.

A alma que perdeu as asas

Há vinte e três anos (em 1937) escrevi um livro inteiro sobre lágrimas. E depois, sem derramar uma única lágrima, nunca mais deixei de chorar.  Quantas horas não terei passado a pensar nas lágrimas que não derramei, que não pude derramar! Vivi toda a minha vida com a sensação de ter sido afastado do meu verdadeiro lugar; se as palavras «exílio metafísico» não tivessem nenhum significado, a minha existência dar-lhe-ia um. Não podemos ser menos deste mundo do que eu — por isso é que pensei tanto em lágrimas. Podia escrever um livro inteiro sobre elas; aliás, escrevi um em romeno . Sentir a própria carne a chorar, o sangue a carregar lágrimas, é do interior de sensações semelhantes que se compreende Plotino quando ele diz que a existência cá em baixo é «a alma que perdeu as asas».  Ter escrito um livro inteiro sobre lágrimas (e santos) — de certeza que isso tem um significado profundo. Tudo o que escrevi reduz-se a isso, a lágrimas agressivas .  Um troglodita e um esteta .   Emil Ciora
Duvido de tudo o que faço. É um defeito que já nem me interessa ultrapassar, digamos que aprendi a tolerá-lo. Sem competências académicas para traduzir Cioran, sei contudo que chego lá quando, a meio das traduções dos Cadernos , começo a chorar ou a rir-me.

O lar e um jornal

Leio no Público que dentro do túmulo de D. Dinis, além das ossadas do rei e do «espólio», os técnicos de restauro encontraram gesso, tijolo, madeira, insectos, plantas, cordas e uma página do Diário de Notícias , datada de Maio de 1938. Tijolo, madeira, plantas e um jornal. Podia ser o anúncio de um promotor imobiliário: apartamentos confortáveis para cidadãos pacatos. Pequenos túmulos em condomínios fechados.

Estofo de escritor

X escreve-me a dizer que gostava de me enviar um jovem muito leal , com carácter, etc., para que lhe dê alguns conselhos em assuntos literários. Respondo-lhe que não lhos posso dar porque não há conselhos nenhuns; mas o verdadeiro motivo da minha recusa é que à priori é duvidoso que este jovem moralmente irrepreensível tenha estofo de escritor. — Não são as nossas qualidades, são os nossos defeitos que prometem .   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972