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A alma que perdeu as asas

Há vinte e três anos (em 1937) escrevi um livro inteiro sobre lágrimas. E depois, sem derramar uma única lágrima, nunca mais deixei de chorar. 

Quantas horas não terei passado a pensar nas lágrimas que não derramei, que não pude derramar! Vivi toda a minha vida com a sensação de ter sido afastado do meu verdadeiro lugar; se as palavras «exílio metafísico» não tivessem nenhum significado, a minha existência dar-lhe-ia um. Não podemos ser menos deste mundo do que eu — por isso é que pensei tanto em lágrimas. Podia escrever um livro inteiro sobre elas; aliás, escrevi um em romeno. Sentir a própria carne a chorar, o sangue a carregar lágrimas, é do interior de sensações semelhantes que se compreende Plotino quando ele diz que a existência cá em baixo é «a alma que perdeu as asas». 

Ter escrito um livro inteiro sobre lágrimas (e santos) — de certeza que isso tem um significado profundo.
Tudo o que escrevi reduz-se a isso, a lágrimas agressivas
Um troglodita e um esteta.

 
Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Comentários

atalhos disse…
Era mais ou menos isso que eu achava: um troglodita. :) Escrever um livro inteiro sobre lágrimas é lindo. Agora fico à espera do link para os Cadernos. Bom trabalho, mas cuidado com a mania das limpezas. Consta que a mãe de Deus um dia escorregou na barra de sabão… E nem os santos lhe valeram. :)
c disse…
Obrigada, é raro cair, mas estou sempre a ir contra as coisas.
atalhos disse…
Ainda bem que não é a tropeçar, o que agora parece ser uma coisa belíssima, “entrei na Bertrand e tropecei no Chagas Freitas”, podia ser no Cioran, mas logo foi no Chagas Freitas, Thomas Bernhard, poesia, não temos, então aquele livro do Walser que encomendei, também não, e do Pavese, algum romance, não, e depois troquei uma Madame Bovary de capa pirosa por mais um tomo da Bíblia e por Veneza, de Marías, muito a propósito. É que nunca fui a Veneza, a viva, por assim dizer, mas já fui à quinta do Mahler. E caí.
atalhos disse…
Graças a Deus não me afoguei.