Tendo sido educado em Sibiu, situada na região saxónica, o jovem Cioran conhecia o alemão tão bem como todos os transilvanos cultos. Foi apenas muito tardiamente, no contacto com o mundo intelectual de Bucareste onde frequentou a universidade, que se familiarizou com a língua francesa. Aliás, será que se teria transformado num escritor francês sem as circunstâncias históricas e políticas que separaram as duas partes da Europa depois da guerra? Podemos perguntar-nos isso uma vez que sabemos que à sua chegada a França, deixou para trás não menos que seis livros escritos entre 1930 e 1940, dos quais o primeiro, Nos Cumes do Desespero conquistou o grande prémio da Academia Royale dedicado aos jovens autores em 1934! Surpreendido pela guerra em Paris em 1940, ficou em França a fim de cumprir aí o seu verdadeiro destino — quase um destino romeno: tornar-se escritor francês.
A obra romena de Cioran permaneceu desconhecida em França por muito tempo. Na Roménia também; aliás, será preciso esperar pela queda do regime comunista em 1989 para que os seus livros publicados nos anos trinta voltem a ver a luz do dia. Hoje, quando a sua obra de juventude (cuja tradução começou em 1986 com Lágrimas e Santos) se encontra quase inteiramente disponível em francês, e ele próprio se vê reconhecido como um dos mestres desta língua, é interessante examinar os textos escritos no outro país e na outra língua. Com efeito, comparar o autor romeno com o autor francês lança muitas luzes sobre o seu percurso após ter tomado a decisão crucial de escrever e, mais até, de pensar em francês.
Nos anos trinta, quando Nietzsche ainda representava uma influência considerável, Cioran escrevia sob o impulso desse «lirismo absoluto» que pregava nos seus escritos. Proclamando a proeminência dos recursos líricos da subjectividade — «face aos refinamentos de uma cultura anquilosada nas formas e nos enquadramentos, (…) o lirismo é uma expressão bárbara cujo valor é feito de sangue, sinceridade e fogo», Nos Cumes do Desespero é, como todos os seus escritos de juventude, uma confissão lírico-filosófica, escrita sem grandes preocupações de estilo. É preciso imaginar Cioran a escrever sem vontade de perfeição formal, não temendo nem o ênfase, nem as repetições, nem sequer as exclamações — unicamente atento à inspiração. É certo que era suportado por uma língua, o romeno, espontânea e maleável, cujas articulações flexíveis permitem todas as liberdades — e até tirava «vantagem» desse carácter «despreocupado» — Nos Cumes… está impregnado desse «dramatismo do processo pelo qual um filósofo torna-se poeta», que Cioran suportava tão dolorosamente — «Como, perguntava ele, consagrar-se à filosofia abstracta quando se desenrola em nós um drama complicado?» — ao que opunha este método: «filosofar poeticamente».
No fundo, entre este primeiro livro romeno e, quinze anos mais tarde, o primeiro livro francês, Breviário da Decomposição, há toda a distância que separa o delírio que «sustém e inventa a vida» e uma palavra a quem teve a revelação do vazio. Entrando na literatura francesa com a intenção de assassinar os ídolos da sua juventude vivida com a febre de demiurgo, Cioran decide substituir a exaltação lírica, as efusões e as errâncias poéticas, às quais o romeno tinha emprestado o seu génio, pelas exigências e rigor do francês. Daqui em diante, encontrará na expressão uma contrapartida à ruptura com o outro eu que tinha exaltado os valores da existência. Nesse sentido, o Breviário da Decomposição anuncia um verdadeiro «segundo nascimento» do escritor em 1949 (então com trinta e oito anos), que por si só simboliza a passagem do termo eminentemente romântico e existencial desespero ao vocábulo realista e voluntariamente sardónico decomposição.
De resto, nem é certo que este segundo nascimento tenha sido tão fácil como se disse. Sabemos, com efeito, que o Breviário teve de ser inteiramente reescrito pelo autor antes da publicação — sem dúvida, a primeira versão apresentada à Gallimard em 1947 devia ser muito próxima dos seus ensaios romenos. Ao instalar-se na prosa francesa, Cioran teve de proceder a uma operação de desbaste de toda uma parte de si mesmo. Logo nas primeiras páginas do livro, lemos: «Arrancado ao objectivo, a todos os objectivos, não conservo dos meus desejos e das minhas amarguras senão as suas fórmulas», e mais adiante: «O vício de definir fez dele (Cioran) um assassino gracioso e uma vítima secreta. E foi assim que se apagou a mancha que a alma espalhara sobre o espírito — a única coisa que lhe lembrava que estava vivo». Doravante, ele vai «abulir a alma, as suas aspirações e os seus abismos, bastar-lhe-ão o espírito e a sensação; desta colaboração nascerá uma disciplina da esterilidade», e acrescenta esta nova resolução que resume toda a sua transformação: «Que nenhum sentimento nos perturbe mais e que a alma se converta na velharia mais ridícula!»
Pondo este programa em execução, Cioran corta nas assombrações e obsessões, obstina-se a amputar as emoções — o francês que usa nesta tarefa representa para ele um instrumento de precisão: renascer ao desbastar a alma sob a vigilância lúcida do espírito. O escritor francês Cioran nasceu pelo acesso ao estilo. Para o forjar, estuda nos livros franceses onde devora menos os temas que a qualidade dos advérbios e a propriedade dos adjectivos: encanta-se com o «laconismo da interjeição»; as subtilidades da língua (francesa, a partir de agora) obcecam-no: admite que se tornou «um pensador de palavras». Torcendo o pescoço ao seu antigo lirismo, esculpe por fim, num discurso reduzido ao essencial, a forma mais próxima do seu génio, o aforismo, com a ira de quem se vingava, ao fazê-lo, por ter renunciado às paixões e, mais ou menos, repudiado as suas convicções. Pois agora o distanciamento do estilista vai a par— o que lhe dá o seu estilo, apesar das aparências, inimitável — com a vontade de impressionar, explorando a clareza mas também a penumbra ondeada da língua francesa.
É ao fazer a ligação com os seus ensaios romenos, onde muitas vezes encontramos os mesmos temas que nos livros franceses posteriores, mas no estado de esboços, ou até mesmo de «raizes orgânicas», que apanhamos em flagrante o modo como Cioran ajusta o seu pensamento e o seu estilo francês. Na juventude, lamentava-se de «sentir um gosto amargo, uma amargura diabólica» que definia como um estado «saído de uma região pré-teórica». O tema reaparece em Breviário da Decomposição, mas com outro tom que mais tarde se tornará célebre em Silogismos da Amargura. Se, em romeno, a «amaraciune» é invocada como uma amargura vital, ligada ao corpo, aos seus males, ao seu mal de vivre; em francês, cobre-se de ironia espiritual, desse espírito personificado pela referência a Madame du Deffand que, escreve Cioran, «embora abominasse a vida, saboreava os encantos da amargura». A melancolia hipersubjectiva de outrora é substituída por um estado de neurastenia elegante que apenas a língua francesa, e sobretudo a dos escritores e memorialistas do século XVIII que Cioran tanto leu, podia proporcionar. Do mesmo modo, é em francês que se lhe revelou «o ridículo de estar vivo», fórmula impressionante onde a inteligência e o espírito levam a melhor sobre o dramatismo da existência. Resumindo, a passagem do romeno ao francês introduz ou provoca no pensamento, apesar da sua continuidade, uma verdadeira mutação de alguns dos seus temas.
É óbvio que Cioran mantém no seu pensamento «francês» a roupagem poética do texto romeno de onde provém; mas eleva-o ao nível do aforismo. Numa bela passagem de Lacrimi su sfinti (Lágrimas e Santos) que se deixa traduzir perfeitamente em francês, ele escreveu: «Job, lamentações cósmicas e salgueiros-chorões... chagas abertas da natureza e da alma... E o coração humano, chaga aberta de Deus». É interessante reencontrar a imagem, dezoito anos mais tarde, em Silogismos da Amargura, onde, recolhida e concretizada, serve de suporte a um aforismo que aparece como uma confissão disfarçada: «Todo pensador, no princípio da sua carreira, opta mesmo sem querer pela dialéctica ou pelos salgueiros-chorões». Renunciando à demanda dos cimos do seu primeiro livro romeno, Cioran optou, como indica o enunciado limpo e brilhante em francês, pela lucidez feroz, repudiando o absoluto e os salgueiros-chorões, mas de forma alguma os seus humores e as suas obsessões, rodando em torno de si mesmo, dos seus abismos e das suas assombrações que agora disfarça sob uma mistura típica de raiva, resignação e, claro, humor. É assim que o sentimento nascido no texto romeno evolui para uma ideia estruturada em francês. O ensaísta distancia-se de si mesmo, transforma-se num Job pensador ou, segundo a sua definição, «um Job convertido às escolas dos moralistas».
Por vezes, um sorriso desencantado resume uma paixão serena como no caso deste estranho entusiasmo pelos santos que enche de cor e de poesia Lágrimas e Santos, e se transforma numa recordação irónica no Breviário da Decomposição: «Houve um tempo em que achava que ser o secretário de um santo constituía a carreira mais alta reservada a um mortal». Além disso, no estilo romeno paira poeticamente uma advertência: «Não há sentimento em Bach, mas apenas o mundo e Deus, religados por uma escada de lágrimas por onde trepam outras lágrimas», que em francês se transforma numa definição brilhante de precisão, embora ainda cavada pelo fundo poético do qual surgiu: «Bach, escada de lágrimas pela qual trepam os nossos desejos de Deus» (Breviário).
Também podemos acompanhar o trabalho de pensamento e estilo noutro parágrafo do Breviário, onde Cioran volta a esse «alexandrinismo» que sempre o fascinou. Em Lágrimas... onde a ideia já se encontra, a língua romena diz: «Só os Antigos sabiam ser cépticos. E, entre eles, aqueles que sobreviveram à intersecção alexandrina. Só eles puseram estilo nas suas dúvidas. (...) Um céptico grego tendo atrás de si todo o pensamento antigo, e assaltado pelas religiões orientais, para quem se podia virar num mundo de valores divergentes todos igualmente justificados? Assim nasceu o prazer de errar entre as ideias e os homens, que caracteriza os períodos alexandrinos». Ouçamos agora, no Breviário, o francês, onde a ideia é recolhida, clarificada e generalizada, não sem acrescentar uma ponta de escárnio: «O alexandrinismo é um período de negações sábias, um estilo de inutilidade e recusa, um passeio de erudição e sarcasmo através da confusão de valores e crenças. O seu espaço ideal encontrava-se na intersecção da Hélade e da Paris de outrora, no ponto de encontro da ágora e do salão». Uma parte dos temas e das palavras («intersecção») é idêntica; mas, em francês, estas últimas servem uma formulação bem mais paradoxal, pois está marcada com o selo irónico da nostalgia e o retorno improvável do «alexandrinismo».
Por fim, citemos esta passagem de Lágrimas e Santos: «Procuro o que é. A minha missão é sem objecto. Vamos para o Juízo Final com uma flor na lapela!» que Cioran retomou, no Breviário, de uma forma impessoal: «Caminhar para o fim da História com uma flor na lapela, o único acessório digno ao curso do tempo. Que pena que não haja Juízo Final, que não se tenha a oportunidade de um grande desafio!». Onde a História, transformada em objecto de meditações desiludidas, substitui a perspectiva escatológica, e onde a bravura romântica é substituída pela descrença irónica...
Pode-se até mesmo perguntar se, na passagem do romeno para o francês, Cioran não terá feito uma completa inversão de perspectiva em relação às ligações da ideia à poesia, de onde vinha todo o seu estilo. Assim, e fazendo eco a toda uma geração de poetas existencialistas, em 1934 ele exclamava em romeno, em Lágrimas...: «o universo não se move para a fórmula, mas para a poesia», em francês, no Breviário, a relação é totalmente invertida e, sinal da sua nova importância, a «fórmula» ganha uma maiúscula: «Neste mundo onde os sofrimentos se confundem e se apagam, só a Fórmula reina». Mudança de rumo decisiva, obviamente relacionada com escolha do francês, «exercício de ascetismo, (...) mistura de camisa de força e de salão» (em Exercícios de admiração), que se torna então e para sempre a sua língua. «Sonho, escreveu em 1949 no Breviário da decomposição, com um Eleûsis de corações desenganados, um Mistério limpo, sem deuses e sem as veemências da ilusão». Nenhuma dúvida de que Cioran tenha encontrado o seu «Eleûsis» na única língua onde o mistério pode ser descrito como «limpo» — este francês que lhe foi legado pelos seus queridos moralistas, entre os quais ele ocupa agora, por direito próprio, o seu lugar.
Sanda Stolojan (tradutora de Lágrimas e Santos para francês). Magazine Littéraire nº 327. Dezembro de 1994
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