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Mensagens

Em contrapartida, eu tenho uma fotografia (muito gira) da Maria Filomena Molder na televisão. 

Equipamentos eléctricos

Leio a entrevista a Maria Filomena Molder que saiu na edição de domingo do Público . O texto de apresentação da entrevistada começa assim: «Não tem telemóvel, nem televisão…» Uma informação relevantíssima, é certo, mas bastante incompleta. O leitor fica sem saber se Molder também não tem frigorífico, nem máquina de lavar.

Lógica do Terceiro Termo Incluído

Laurent Devanne: (...) alors que vous êtes dans une démarche inverse où c’est plutôt les temps morts qui vous intéressent...  Chantal Akerman: ... et qui révèlent les morts. Écoutez, je déteste les trucs binaires. Je pense que dans la victime, il y a parfois du bourreau et dans le bourreau, il y a parfois de la victime. Regarder le monde d’une manière binaire, c’est rester dans tout ce qu’on a eu dans ce siècle. Il y avait le capitalisme, le communisme, je pense que c’est une vision étriquée. Je ne sais pas si ses films sont comme ça. Mais quand vous dites « bourreaux et victimes », je ne veux pas de situation étriquée et binaire. Il faut toujours qu’il y ait un 3ème terme.

Violência, tortura, morte e efeitos especiais

Faz hoje um ano que os militares russos invadiram a Ucrânia. Para assinalar a data, a Antena 1 (estação pública de rádio) criou um separador com uma espécie de «música épica», meio pop, meio Wagner de fancaria, acompanhada por uma voz grave a debitar umas banalidades excitantes sobre a guerra. Uma coisa tão séria e informativa como o trailer de um filme de super-heróis de Hollywood.

Palavras familiares

Estou a traduzir um texto da Chantal Akerman em que ela usa palavras da mãe. Ela é boa a usar as palavras da mãe, consegue agarrar a voz e os medos e a escuridão e o amor que essas palavras encerram. Para fazer o meu trabalho de intermediária, tive de convocar as palavras da minha mãe e da minha avó e, mais uma vez, dei-me conta do enorme património que me deixaram: palavras muito simples, imperfeitas, quase esbotenadas, mas com uma potência desarmante.  Quando usamos as palavras dos mortos acontece uma coisa curiosa, é como se nos encontrássemos a meio do caminho, eles um pouco vivos e nós um pouco mortos.

Quando?

Tinha setenta e muitos, talvez mais. Caminhava pelo passeio, arrastando atrás de si um daqueles expositores de folhetos das Testemunhas de Jeová. Demorou dez minutos a percorrer cem metros. O cartaz que cobria o expositor dizia: «Quando acabará o sofrimento?»
Calum Aaron Patterson tem qualquer coisa de Seymour Glass.  

Miúdos

Na maior parte dos filmes que tenho visto as personagens principais são miúdos. Como agora vou tão pouco ao cinema não pode ser uma tendência global, terá de ser outra coisa mais interior.  Desconfio que é uma necessidade de contrariar o pessimismo que toma conta de tudo de um jeito quase cínico  — já só confio nos miúdos para uma tarefa tão difícil.

O castigo de Adão

Para o crítico profissional (já fui um deles), ir ao teatro é o castigo de Adão. A peça é o mal que ele é pago para suportar com o suor de seu rosto: quanto mais depressa terminar, melhor. Isto parece colocá-lo em irreconciliável oposição ao frequentador de teatro que paga, e para quem quanto mais longa a peça, tanto mais entretenimento recebe em troca do seu dinheiro.  (...) Pois em Londres os críticos são amparados por considerável número de pessoas que vão ao teatro como muitos outros vão à Igreja: para exibir suas melhores roupas e compará-las com as dos outros; para estar em dia com a moda e para ter algum assunto nos jantares de gala; para admirar um actor favorito; para passar a noite em qualquer parte, menos em casa; em suma, por qualquer motivo ou por todos os motivos, excepto interesse na arte dramática em si. (...) Assim, das poltronas e da imprensa ergue-se uma atmosfera de hipocrisia. Ninguém diz com franqueza que o teatro verdadeiro é uma grande maçada e exigir das pesso

O mar, o mar

Voltei a sonhar com o mar: estávamos a mudar o sistema operativo do mar numa cabine lá no alto, uma espécie de farol horizontal sobre as dunas. Não sabíamos como é que aquilo ia correr, nunca tinha sido feito. Havia água a toda a volta mas era o mar à frente que metia medo pois as correntes eram muito fortes e deixavam sulcos profundos. O mar parecia um desenho feito de cabelos azuis e castanhos e estavam todos enredados e sombrios. De manhã, no metro, tentei guardar as imagens na memória e, talvez porque se sentou ao meu lado um rapaz a ler uma bíblia com capa castanha, logo a seguir ocorreu-me que deus também podia ser um sistema operativo —  mas isso não é um cliché?   Foi aí que percebi: ei, lá estou eu a escrever canções para a Laurie Anderson .

1.000 francos por mês

Uma das características essenciais do trabalho de Cioran é a precariedade. Primeiro existencial, pois apercebeu-se desde o princípio da extrema fragilidade e incerteza da vida. Mas também e sempre material: viveu muitos anos em hotéis baratos, comeu na cantina da Sorbonne enquanto o deixaram, e pouco tinha de seu. Aliás, não gostava sequer da ideia da posse ( A posse faz-me sofrer mais do que a miséri a) e não tinha jeito para se sustentar.  Numa anotação feita nos últimos meses de 1967 nos seus Cadernos , Cioran escreveu que quando um velho amigo lhe perguntou quanto é que ganhava por mês teve vergonha de dizer a verdade —  teria causado mal estar . Por isso mentiu e disse que ganhava mais ou menos 1.000 francos. Pareceu pouco ao amigo. —  Ah, se ele soubesse!

Felicidade de raivoso

O amor é um sentimento bastante anormal, pois é acompanhado por todos os estados confusos que normalmente caracterizam uma mente perturbada: angústia, desespero, desconfiança mórbida, lampejos de felicidade, egoísmo levado à ferocidade etc. É uma felicidade de raivoso. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Não há plantas que se dêem aqui

WILLY: Tudo se há-de arranjar, tudo se há-de arranjar. Hei-de ver se não me esqueço de trazer logo umas sementes para o jardim. LINDA, com uma gargalhada : Tens cada uma! O sol quase que nem cá entra, Willy. Escusas de teimar, que não há plantas que se dêem aqui. Arthur Miller, Morte dum caixeiro viajante . Tradução de José Cardoso Pires e Victor Palla.

Sorrisos

A revista britânica de viagens Condé Nast Traveller elegeu os habitantes do Porto como dos «mais sorridentes e acolhedores» da Europa. Soube desta notável distinção através do semanário Expresso . Talvez os leitores da revista britânica, e também os do Expresso, se estejam a interrogar porque diabo sorriem os tripeiros? Compreendo a pergunta. A resposta, porém, é bastante simples. Eu explico. Sorrimos porque somos liberais e acreditamos nas leis do mercado. E com as leis do mercado conseguimos expulsar da cidade uma parte importante dos portuenses. E isso é bom porque muitos de nós não têm dentes. E um sorriso sem dentes não sei o que parece. Não fica bem nas fotografias. Sorrimos porque já ninguém vive na Rua das Flores, na Rua do Almada, no quarteirão da câmara, etc, etc. E isso faz-nos sorrir porque fachadas sem pessoas e com flores de plástico dão cenários muito mais bonitos e instagramáveis . Sorrimos porque não há canto, arcada ou entrada de prédio onde não durma uma pessoa sem

Sábado ao sol

Sentado na esplanada, observo os pardais a empanturrarem-se de queques e torradas, que os turistas deixaram abandonados pelas mesas. Os pardais, enquanto enchem o papo com o repasto, observam divertidos aquele enorme lagarto ao sol, a catar minúsculas migalhas entre as páginas de um livro.