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Mensagens

22 de maio (1970)

Com a minha cobradora de impostos. Uma senhora de olhar frio, quase malicioso. Acha que não ganho o suficiente, ou melhor, que não declarei o suficiente.  — Está bem vestido. O seu fato é novo.  — São os amigos que me vestem.  — E para comer?  — Tenho a vantagem de ter uma gastrite. Estou de dieta. Nunca vou a restaurantes. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

Luz de presença

Aparece na página 36, sem nenhuma relação com Alicia. No Napoleon House, no bairro francês, um tipo conta como conheceu Bobby Western e às tantas diz: «Citei-lhe Cioran, ele citou-me Platão acerca do mesmo assunto.» Uma coisa de nada, mas vou considerá-la como luz de presença.
Apesar de fazerem parte de um díptico, quando acabei Stella Maris , não consegui passar logo para O Passageiro — certos livros precisam de um bocado de película negra no fim, como os filmes de Godard ou aquela cena do Sans Soleil .

Juventude em marcha

Fico sempre espantada como é que homens tão velhos podem criar personagens tão jovens e bravias. Alicia Western é uma mulher improvável, mas é também, e sem contradição, extremamente verdadeira e apaixonante. (É da mesma têmpera da Karin de Saraband .) Dá a impressão que Cormac McCarthy guardou para o fim uma energia qualquer, uma forma diabólica de interpretar a fuga de Bach que, em português, talvez se possa traduzir por juventude em marcha.

Amanhã há mais

Fim de tarde. Regresso a casa após mais um dia de trabalho. No metro, ouço um tipo dizer a outro: «Por hoje já está.» O segundo responde: «Amanhã há mais.» E isto é dito no tom branco e neutro de uma ladainha. É impossível perceber se existe um pingo de entusiasmo naquele «amanhã há mais» ou se, pelo contrário, é a tristeza que ali espreita e mostra a ponta fria do nariz.

Experiência da dupla fenda

Foi por acaso. Encontrei-o na biblioteca, na prateleira das novidades, mas era por aqui que queria começar: Stella Maris , o último livro de Cormac McCarthy. Alicia Western podia ser uma leitora (perversa?) de Cioran. Talvez até o conseguisse transformar numa equação?

O mar a agitar-se na tela

De repente, lembro-me do primeiro filme que vi (em 1919?) em Sibiu, no cinema «Appollo». Se não me engano, o filme chamava-se A Dama do Mar ( Doamna Mării ) (??) Recordo-me da perturbação que senti ao ver o mar a agitar-se na tela. Essa sensação, nunca a devia ter esquecido; e, no entanto, só me ocorreu hoje, quarenta e cinco anos depois! Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (fevereiro de 1966)

Não

A ventoinha roda a cabeça, uma e outra vez, negando tudo: não, não, não. Bartleby mecânico, sem palavras, a agitar levemente os papéis sobre as secretárias. O único «não», surdo e sumido, que o mundo consente aos empregados de escritório.

Une chute oblique, très douce.

Prefiro sempre ir ao cinema sozinha. Mas no caso de Sob o Sol de Satanás , podia ter ido com Cioran. Acho que ele ia gostar daquela viagem nocturna em que o padre Donissan encontra a encarnação de Satanás: um tipo que anda por aí, de um lado para o outro, por conta de um negociante de cavalos. 
Sous le Soleil de Satan , de Maurice Pialat, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1987. À Antenne 2, Yves Montand, presidente do júri, disse que ficou muito contente por o filme ter sido escolhido por unanimidade apesar de dois ou três membros do júri terem lamentado que, por vezes, algumas palavras lhes escapassem. A linguagem de Bernanos já é tão difícil para nós, imaginem então para os estrangeiros.

A política do falso caracol

Expliquei hoje a Piotr Rawicz que a minha política é a do caracol: esconder-me, retirar-me, sair apenas ocasionalmente. Ele respondeu-me que não é assim tão simples, que apesar de tudo somos solicitados pelo mundo. Concordei. «Sou um  falso caracol», disse-lhe.   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (julho de 1967)

Alguns dizem que não há mundo fora do capitalismo

Eduardo Viveiros de Castro: Todas as nossas liberdades, de ir e vir, de viajar, de não precisar de lavar roupa à mão, estão assentes numa economia de combustíveis fósseis. Isso explica muito da hesitação do pensamento clássico de esquerda de considerar a catástrofe ecológica como uma questão crucial e perceber que a justiça social e a justiça ambiental são a mesma coisa. Sempre houve no pensamento progressista a ideia de que a dominação do homem pelo homem, como se dizia, só acabará quando o homem dominar completamente a natureza, que sempre foi o projecto da modernidade. Déborah Danowski: O contraponto disso é achar que nós só nos devemos preocupar com as questões ecológicas depois de resolvermos os problemas do homem, a pobreza. E.V.C.: Há uma famosa frase do Aristóteles que está no fundo disso, que era ele justificando a escravidão em Atenas, dizendo que o dia em que os fusos trabalharem sozinhos já não precisaremos de escravos. Como fazer isso? A tecnologia, um dia, vai-nos livra

Afinidades

Junto aos moralistas franceses do século XVIII — era aí que, em parte, Cioran sentia pertencer.  Por duas vezes, regista nos Cadernos que os espíritos de que se sente mais próximo são Job e Chamfort. Numa das formulações escreve mesmo:  sou um aluno de Job e Chamfort . Pela forma como estrutura o pensamento, pela delizadeza do seu francês, e principalmente por mais qualquer coisa que não se deixa definir, é uma afirmação verdadeira.  No entanto, se tivesse que descrever as suas afinidades com as minhas próprias palavras, correndo o risco de parecer que estava a apresentar um namorado recente, diria que Cioran está entre Bach e Francis Bacon (o pintor).

Mercado regulado

Nos Estados Unidos, um bando de malucos fortemente armado e encorajado pelo presidente, invade o Capitólio, mata polícias, pilha e parte tudo o que encontra pela frente. Na Rússia, o CEO de uma empresa privada de guerra, cujo principal cliente é o Estado, ameaça marchar com os seus colaboradores até Moscovo, numa espécie de operação comercial falhada e sem consequências. Conclusão: o capitalismo russo é mais ordeiro.
Até estava inclinada para os dois filmes do João Canijo, mas o Mal Viver deixou-me com tantas dúvidas. É fácil gostar do hotel já um bocado estragado e da paisagem (conheço aqueles pinheiros da minha infância) filmados daquele jeito, no entanto há ali qualquer coisa que não funciona; um desavindo entre a forma e o conteúdo? Parece que elas estão num filme de Cassavetes, mas por engano. É como o livro da Clarice Lispector e o filme do César Monteiro —  mais duas pistas deslocadas. Mesmo assim, vou insistir na perspectiva dos outros. Boa vontade não me falta.
Os cartazes de Cidade Rabat ao longo da linha do metro abrem uma brecha na realidade. Às vezes, o cinema começa antes do cinema.

Il s’agit bien de cela

Nunca deixo de me espantar com a capacidade de Jean-Luc Godard pensar o cinema por dentro. Em 1981, aproveitou uma passagem pelos estúdios Zoetrope para filmar Une bonne à tout faire . À primeira vista parece uma espécie de ensaio de Passion .  Mas com Godard as coisas nunca são o que parecem, e passado algum tempo ocorreu-me que também podia ser um aforismo cinematográfico , o cinema a dizer mais uma vez a frase do carteirista: Pour aller jusqu'à toi, quel drôle de chemin il m'a fallu prendre . Mas, a quem?