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Alguns dizem que não há mundo fora do capitalismo

Eduardo Viveiros de Castro: Todas as nossas liberdades, de ir e vir, de viajar, de não precisar de lavar roupa à mão, estão assentes numa economia de combustíveis fósseis.
Isso explica muito da hesitação do pensamento clássico de esquerda de considerar a catástrofe ecológica como uma questão crucial e perceber que a justiça social e a justiça ambiental são a mesma coisa. Sempre houve no pensamento progressista a ideia de que a dominação do homem pelo homem, como se dizia, só acabará quando o homem dominar completamente a natureza, que sempre foi o projecto da modernidade.

Déborah Danowski: O contraponto disso é achar que nós só nos devemos preocupar com as questões ecológicas depois de resolvermos os problemas do homem, a pobreza.

E.V.C.: Há uma famosa frase do Aristóteles que está no fundo disso, que era ele justificando a escravidão em Atenas, dizendo que o dia em que os fusos trabalharem sozinhos já não precisaremos de escravos. Como fazer isso? A tecnologia, um dia, vai-nos livrar dessa espécie de pecado original, que é você ter de escravizar. E isso aconteceria quando você dominasse a natureza.
Quando começámos a perceber que quanto mais se dominava a natureza, mais ela nos dominava, quanto mais você desagregava a matéria e energia para produzir mercadorias, você se tornava mais vulnerável ao clima em geral, essa questão ficou complicada. O que a crise ecológica implica é uma necessidade de repensar os termos dos conceitos de emancipação e liberdade.

(...)

D.D: Depois de a gente publicar esse livro, [Há Mundo por Vir?], fiquei um pouco incomodada porque o fim do mundo passou a ser quase um tema interessante de ser explorado esteticamente. Acho injusto para com as pessoas que já estão vivendo e que vão viver isso que está sendo chamado de fim do mundo.
Não estamos falando do fim absoluto do mundo, embora algumas imagens pensem essa questão. A gente está acabando com várias espécies, mas não com todas. A Gaia, como temos hoje, não vai mais existir, talvez mude o seu ponto de equilíbrio. Talvez a gente dance, nessa mudança. Pode ser que sobre um punhado de indígenas no alto dos Andes, vários punhados de pessoas, de gente, nos altos, escondidos na floresta.
É importante perguntar que mundo é esse onde as pessoas vão existir. Quem vai existir? Pode ser que sejam humanos, que a gente ainda possa chamar de humanos, mas certamente são outros povos, porque a maneira como hoje vivemos não se sustenta.
Alguns dizem que não há mundo fora do capitalismo. São as mesmas empresas que estão construindo usinas [fábricas] eólicas, instalando placas solares em extensões imensas do deserto e com isso há uma nova onda de destruição em nome da preservação do mesmo modo de vida. No semiárido nordestino no Brasil está havendo uma devastação, as grandes empresas estão tomando terras que estavam sendo recompostas por pequenos agricultores. De repente, vem mais uma onda de destruição, dessa vez em nome de tecnologias limpas.
As pessoas vão continuar existindo em condições certamente piores. Antes de as espécies serem extintas, elas vivem vidas muito piores. É preciso fazer esse exercício de imaginar que não existe o mundo de hoje ou o nada. Existe uma coisa no meio que é terrível.

E.V.C: O problema principal não é que tem gente de mais no mundo, é que tem mundo de menos para muita gente. Há pessoas que não têm mundo suficiente para viver, porque os norte-americanos e os europeus são altamente perdulários em relação a outros povos. Especialmente o tipo de padrão de consumo norte-americano e que, aparentemente, países como a China parecem visar como ideal. Vai ser um desastre.
Nós vamos viver em condições piores do que vivemos agora. Vamos chegar a dois graus, com certeza, em poucas décadas e talvez a quatro — aí vai ser de facto uma catástrofe que provavelmente vai varrer da face da Terra uma grande proporção da população humana e não-humana. Mas com dois graus evidentemente vai haver uma convulsão social planetária que pode significar qualquer coisa, desde guerras de extermínio provocadas pelos grandes poderes estatais para ocupar territórios, até guerras civis, convulsões, epidemias. 
No Brasil não há transição nenhuma. O que você tem é a adição de novas formas de energia às velhas formas. Continuamos retirando o petróleo e vamos acrescentar o solar, o eólico, o nuclear, o que mais vier, mas vamos continuar tirando o petróleo. Vamos continuar a construir hidroeléctricas onde não devem ser construídas. Pelo menos no Brasil, o capitalismo não vai abrir mão de nada que constitua lucro, vai apenas criar novas oportunidades de lucro. Ou o capitalismo acaba ou a espécie vai sofrer uma pioria imensa das suas condições de existência. Eu confio que o capitalismo se vai desmoronar sob seu próprio peso.

Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, numa entrevista publicada na edição de hoje do jornal Público.

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