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Mensagens

Tinha paixão

Morreu o Jorge Silva Melo. Não há biblioteca em Portugal, pequena, grande, pública ou privada, que não tenha pelo menos um livro escrito, traduzido, editado ou prefaciado por ele. E são todos importantes. Depois, há ainda o teatro e o cinema, que no seu caso também começam e acabam nos livros. Tinha setenta e três anos. E tinha paixão.

A imagem pode não corresponder

Na embalagem de ervilhas congeladas, no canto inferior direito, uma frase em letras pequenas: «A imagem pode não corresponder exactamente ao produto, sendo meramente demonstrativa.» Quantos programas televisivos não deviam ser acompanhados por uma frase semelhante? Qual a diferença entre certos noticiários da televisão e o rótulo publicitário de uma embalagem de ervilhas congeladas? Na verdade, há uma diferença no conteúdo: as ervilhas tiram a fome.

Facebook permite temporariamente posts violentos contra tropas russas ou que peçam morte de Putin.

A Meta [empresa do facebook] vai permitir, ainda que temporariamente, que os utilizadores do Facebook e do Instagram de alguns países clamem por violência contra soldados russos. Esta informação consta de uma série de e-mails a que a agência Reuters teve acesso nesta quinta-feira e que falam de uma mudança temporária na política de discurso de ódio das plataformas. A empresa de redes sociais também vai autorizar a divulgação de publicações que peçam a morte dos presidentes russo, Vladimir Putin, ou bielorrusso, Alexander Lukashenko, em países como a Rússia, Ucrânia e Polónia, de acordo com um conjunto de e-mails internos enviados para os moderadores de conteúdos. (...) Foi dito ainda que os apelos à violência contra os militares russos são permitidos quando a publicação se refere claramente à invasão da Ucrânia. Estas mudanças temporárias nas políticas da empresa aplicam-se na Arménia, Azerbaijão, Estónia, Geórgia, Hungria, Letónia, Lituânia, Polónia, Roménia, Rússia, Eslováquia e Ucrâ

Saída

A história não é circular, obviamente. Mas parece. Estamos convencidos de que avançamos, mas na verdade andamos às voltas. Exactamente como os personagens de La Mort en ce Jardin , de Buñuel. Por mais esforço que façamos para encontrar uma saída, voltamos sempre ao mesmo sítio. Outra imagem: leões às voltas numa jaula.

Certezas

Um rinoceronte a tecer observações sobre uma escultura de Brancusi. A ideia é de Cortázar e surge num certo livro a propósito de outra coisa. É exactamente assim que me sinto. Um paquiderme desesperado a tentar formar alguma ideia mais ou menos firme sobre estes dias sombrios. Gostava de ter as mesmas certezas dos comentadores das televisões. As mesmas opiniões sólidas, sem margem para dúvidas, dos cronistas de jornal. Não, não gostava. Ter certezas é muito pior.

Petróleo

Na televisão, uma mulher em fuga cai junto à berma de uma estrada. A mulher cai uma vez, cai duas vezes, cai três vezes. Um tipo está sentado no estúdio a comentar. Diz qualquer coisa sobre petróleo. A realização repete a imagem em loop . A mulher cai quatro vezes, cinco vezes, seis vezes. O tipo continua a dizer qualquer coisa sobre petróleo. A mulher cai sete, oito, nove, dez vezes. O tipo fala sobre petróleo. A mulher cai onze vezes, doze vezes, treze, catorze, quinze vezes. Petróleo. Dezasseis, dezassete, dezoito. O tipo fala de petróleo.

Anoitece

Leio nos jornais que cidadãos europeus negros, africanos, de origem asiática e do médio oriente que tentam fugir aos tanques de Putin são barrados na fronteira por soldados ucranianos: primeiro passam os brancos. Do outro lado da fronteira, na Polónia, os mesmos refugiados são alvo de ataques xenófobos e racistas por parte de nacionalistas polacos: «segundo a polícia polaca, os agressores, vestidos de preto, agrediram grupos de refugiados não brancos, nomeadamente estudantes que tinham acabado de chegar à estação de comboios de Przemyśl.» Em Portugal, cidadãos russos são alvo de ameaças e actos de descriminação, que «chegam em forma de telefonemas, mensagens de texto ou comentários nas redes sociais». Nas televisões, os repórteres que acompanham a vaga de refugiados não se cansam de repetir que os ucranianos são «pessoas como nós», usam as mesmas roupas, os mesmos telemóveis, os mesmos carros. Não são afegãos, sírios, iraquianos ou sudaneses a fugirem em botes pelo Mediterrâneo. São «i

Civilização

«Comecei a olhar para o chão em vez de olhar para o céu. Comecei a olhar para o que as pessoas deitam fora em vez de para aquilo que os arquitectos constroem.»

Palavras de ordem

Uma sequência de Noite Incerta , de Payal Kapadia: os estudantes do Instituto de Cinema e Televisão da Índia manifestam-se contra o novo director da escola, nomeado pelo governo nacionalista hindu; nos protestos, gritam-se palavras de ordem como «Eisenstein, Pudovkin, vamos ganhar».
Bradar aos céus. Podia dia ser o título de uma colectânea de Emil Cioran. A meio caminho entre a poesia dos anjos caídos e a desafinação do death metal.

Guerra

Leio o que posso sobre a invasão da Ucrânia pelas tropas do governo russo e não consigo compreender. Quem ganha com esta guerra? E ganha o quê? Quem perde, sabemo-lo bem: os sempiternos perdedores, os pobres da Ucrânia, da Rússia e de toda a parte, os que não têm meios para se defender das agressões do mundo. Mas o que ganham exactamente os «vencedores»? Trata-se somente de somar mais poder e dinheiro? Se é só uma questão de poder e dinheiro, não consigo compreender. Ou há mais alguma coisa? Provar que se pode desafiar directamente a morte? Ter nas mãos o destino de um número infindável de pessoas? Ser-se deus? Jogar com a nossa estranha atracção pelo fim do mundo?

Os nossos especialistas

Abra-se um jornal, ligue-se a rádio, veja-se a televisão. Impressiona o repentino número de especialistas portugueses em história e cultura russas. No meio de todo este frenesim de conhecimento, fica-se com a certeza de que os nossos bulímicos especialistas sabem coisas sobre os russos que os próprios russos ignoram.

A tua mais completa tradução

Ao mesmo tempo que tento arranjar as palavras mais convenientes para traduzir as confissões e pensamentos irrequietos dos Cadernos , alguma coisa acontece — não é bem uma influência, é mais da ordem do parentesco, creio.  Dou por mim a querer oferecer coisas a Cioran; até um cão já me passou pela cabeça.  Dou por mim a vê-lo como um mestre de artes performativas  ( que, ao ser proferido, corresponde à acção a que se refere ). Começa por fazer de filósofo, de escritor, de místico, de estrangeiro, etc., mas o grande golpe é quando interpreta o ser humano — aí, Cioran supera-se.  As lágrimas, de novo. Uma palavra irradiante.