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Mensagens

Ideia para uma investigação

Estudar as semelhanças entre a repórter Alice Schalek, personagem de Karl Kraus, e Madame Valiche, personagem de Jean Cocteau. Madame Valiche, participante secundária da louca jornada de  Tomás, o Impostor , parece uma cópia menos sofisticada da incontornável Schalek, de Os últimos dias da humanidade .  Ou Alice Schalek é uma versão mais complexa de Madame Valiche. Onde acaba uma e começa a outra? Alice Schalek, como outras personagens de Karl Kraus, é inspirada numa figura real . Madame Valiche, por sua vez, não se inspira em nenhuma personalidade conhecida, ou seja, é inspirada em muitas. Kraus começou a escrever a sua obra-prima em 1915 e publicou-a em livro em 1922. Cocteau lançou Tomás, o Impostor , em 1923. O primeiro parágrafo de Tomás, o Impostor parece o resumo possível de Os últimos dias da humanidade :  A guerra principiou na maior desordem. Esta desordem nunca cessou, do princípio ao fim. Uma guerra breve teria podido amadurecer e, por assim dizer, cair da árvor

História natural

Por estas fontes somos informados de que o abutre era o símbolo da maternidade porque se julgava existirem apenas abutres fêmeas e nenhum macho nesta espécie de aves. (...) Mas como se daria então a fecundação dos abutres se só existiam fêmeas? Numa certa passagem de Horapollo é dada uma boa explicação: numa determinada altura do ano estas aves mantêm-se imóveis no ar, abrem a vagina e são fecundadas pelo vento. (...) O erudito e editor e comentador de Horapollo assinala a propósito do já citado texto: «De resto, os Pais da Igreja apoderaram-se avidamente desta lenda sobre os abutres, a fim de refutar, com este argumento retirado da história natural, aqueles que negavam o parto da Virgem; é por isso que, quase todos eles, fazem menção deste assunto.» (...) Se, segundo as melhores fontes da antiguidade, os abutres estavam reduzidos a deixar-se fecundar pelo vento, porque é que algo de semelhante não poderia também acontecer a uma mulher? Sigmund Freud, Uma recordação de infância de Le

Aquilo somos nós

“ Eu não sou o teu negro é uma peça importante para se perceber um pouco melhor o que raio se passa, o que raio ainda se passa, na América destes dias”, escreve Luís Miguel Oliveira, no Público de hoje . Na verdade, creio que é mais do que isso. O filme de Raoul Peck sobre James Baldwin ajuda a perceber o que raio se passa na nossa cabeça desde o princípio dos tempos. O que raio se passa na América, mas também na Europa, na Ásia, em qualquer parte do mundo. O que raio se passa connosco. Que raio de estranho poder é este que o nosso lado mais sombrio e sinistro exerce sobre nós. “O que Baldwin fez”, diz Raoul Peck, “foi colocar um espelho à nossa frente”. Imagino um espelho cheio de pó. Um pó acumulado durante anos, durante séculos. O que Raoul Peck faz, através do pensamento claro e simples de James Baldwin, é retirar esse pó, camada após camada, até conseguirmos ver a nossa imagem reflectida no espelho. E a imagem é horrível. Aquilo somos nós.

Shakespeare já lá tinha estado

Enquanto poeta em prosa do pós-shakespeariano, Freud navega na esteira de Shakespeare; e a ansiedade da influência não tem sofredor mais distinto do nosso tempo do que o fundador da psicanálise, que descobria sempre que Shakespeare já lá tinha estado antes dele, e muito frequentemente não conseguia aguentar o confronto com esta verdade humilhante. Harold Bloom, O cânone ocidental . Tradução de Manuel Frias Martins.

Pássaro fluido

Se Derrida compara o poema a um ouriço , João Cabral de Melo Neto designa-o por “pássaro fluido” . O ouriço, bicho que habita em buracos ou entre as sombras, sob ervas e ramos, e que ao mínimo sinal de perigo se enrola numa bola de espinhos, não podia estar mais distante de um pássaro, bicho com asas, veloz, esquivo e capaz de voar. E, no entanto, Derrida e Melo Neto não podiam estar mais próximos de um nome possível para o poema. Uma coisa viva parecida com outra e o seu contrário. Meio pássaro, meio ouriço. Como o mundo.

Homem parado a grande velocidade

Num dos quatro ecrãs , há um homem que segura um ramo de árvore em cada mão. O homem agita furiosamente os ramos. As mãos estão ocultas na sombra. O corpo permanece, tanto quanto possível, imóvel. Folhas e galhos batem-lhe nos cabelos, que parecem varridos por um vento terrível. Os olhos fixam-se num ponto longínquo, atrás da câmara. A expressão do personagem é de angústia, uma angústia absoluta. A luz é de um vermelho febril e sanguíneo. Tudo estremece num completo alvoroço. Está tudo em movimento. O homem parece deslocar-se a uma velocidade vertiginosa e, no entanto, está parado, preso no interior de qualquer coisa que não se vê, mas que adivinhamos, sem saber explicar.

O ouriço

Em Che cos’è la poesia? , Jacques Derrida compara o poema a um ouriço enrolado em bola, no meio de uma auto-estrada. “Desejaríamos pegá-lo nas mãos, conhecê-lo e compreendê-lo, guardá-lo para nós, junto de nós.” Salvar o ouriço é expormo-nos igualmente ao perigo. “Daí a profecia: traduz-me, vela-me, guarda-me um pouco mais, salva-te, deixemos a auto-estrada.” Mais à frente, Derrida escreve: “Não há poema sem acidente, não há poema que não se abra como uma ferida, mas que não abra ferida também.” De um acidente, podemos sair com vida ou sem ela. Mas, de uma maneira ou de outra, o impacto é inevitável e ficarão sempre marcas e cicatrizes.

Quinze minutos de palmas

MAQUINISTA: O meu avô palhaço suicidou-se em pleno espectáculo. Enforcou-se no trapézio, toda a gente julgava que era um número cómico! Houve quinze minutos de palmas entes que as pessoas percebessem que ele estava morto! AUTOR: É isso a arte! Copi, A noite da dona Luciana . Tradução de Isabel Alves.

Na cabeça de Samuel Beckett

Tania Bruguera montou Endgame no interior da cabeça de Samuel Beckett. Por dentro, tudo é branco. Paredes brancas, chão branco, “tão branco, tão limpo”, ou melhor, sem cor, um «deserto». No centro, um homem cego, Hamm, preso a uma cadeira de rodas. Através de uma abertura na cabeça, outro homem, Clov, entra e sai, coxo, incapaz de se sentar. Clov é uma espécie de escravo de Hamm. A verdade, porém, é que Hamm depende de Clov, escravo do seu escravo. E ambos são escravos da cabeça de Beckett. Em cima: o interior da cabeça de Samuel Beckett. A cabeça de Beckett está apoiada numa impressionante estrutura espiralada em ferro (trata-se de uma grande cabeça, pesada, cilíndrica, a testa muito alta). O interior é inacessível ao público, excepto através de pequenas aberturas onde só cabe, justamente, a nossa cabeça. Sessenta cabeças dentro da cabeça de Beckett. Sessenta cabeças a observar o que ali se passa, a olhar directamente Hamm e Clov, olhos nos olhos, ou dito de outro modo, a

Remover tudo o que pudermos

Eu diria que Rei Lear é provavelmente a maior peça de Shakespeare e por isso mesmo a mais difícil. A todo instante constatamos uma terrível verdade: é mais difícil montar obras-primas do que qualquer outra coisa. Estávamos nos queixando disso outro dia, no ensaio, e James Booth, que havia levado uma corda de pular, sugeriu: “Não seria gozado se fizéssemos a cena toda pulando corda?” E eu respondi: “A tragédia de estar montando uma peça tão maravilhosa é que não se pode fazer esse tipo de coisa. Somente quando se tem absoluta convicção de que certos momentos foram mal escritos ou são maçantes pode-se tomar a liberdade de inventar cordas, pular e coisas assim. (...) O objetivo do cenário é atingir um grau de simplificação que faça com que as coisas importantes apareçam mais, pois a peça já é bastante difícil sem o acréscimo do eterno problema causado por qualquer forma de decoração romântica. Para quê a decoração numa peça ruim? Para isso mesmo - para decorá-la. Em Lear , ao contrário,

Notas ingénuas sobre teatro

“O teatro está em crise.” Aparentemente, foi o cinema que desferiu o primeiro golpe. Depois apareceu o cinema sonoro, em 1929. Um pouco mais tarde, a televisão. Durante o século XX, a grande questão estava em saber de que forma o teatro se poderia diferenciar do cinema e da televisão. Que elementos faziam do teatro uma expressão de arte única, impossível de imitar pelos outros meios? Procurei encontrar, através da prática da encenação, uma resposta para as questões com que me tenho debatido desde o início: Que é o teatro e qual a sua essência? Quais os seus elementos que não podem ser substituídos nem pelo cinema nem pela televisão? (Jerzy Grotowski, Em busca do teatro pobre , 1971.) Se Grotowski escrevesse hoje, teria que considerar igualmente os novos meios digitais, cujo poder não tem paralelo na história da humanidade. Na verdade, também a televisão e o cinema estão em crise. Não há como negar: a formação e o gosto de uma parte significativa do público é construída online.

Eu? Nada

- Desculpe. Mas que faz você debaixo desta chuva? - Eu? Nada! Sonho com o Verão morto, choro o Verão que não voltará! Espero, além disso, que me aviem a receita na farmácia. Curo-me e aborreço-me. Miroslav Krleza, O grilo sob a cascata . Tradução de Irondino Teixeira de Aguilar.

Sábado, 15 de Abril, 17h00, na Sede

Mais informações aqui .

al mada nada

Em Saltibancos há uma menina chamada Zora, contorcionista num circo miserável, juntamente com a mãe e o pai. Artistas pobres, trágicos, falhados. Alvos da chacota dos espectadores, que lhes atiram pedras. Trovões que atravessam o ar, ferem a carne e fazem explodir as lâmpadas de acetileno, extinguindo a luz do circo. A história começa com soldados num quartel, sob um sol pesado e quente, e termina num festim de violência, em plena escuridão. O caminho que vai do princípio ao fim lembra uma via crucis . A paixão dos personagens, de Zora e dos pais, é uma imagem poderosa da condição do próprio teatro: as luzes acendem; os actores nascem, entregam-se com o corpo todo a uma espécie de imolação diante do público, morrem; as luzes apagam-se; escuridão; fim. Não resta nada.

Outros Saltimbancos

Os Saltimbancos de Manuel Guimarães.

Subir pelas paredes

Eis o menos nobre e mais vulgar dos materiais: o plástico. Barato, banal, está por todo o lado e serve para tudo. É o mais popular dos materiais. E que valor tem quando perde a sua utilidade? O que vale o pedaço de um brinquedo partido? O que resta de um recipiente de cozinha? Uma embalagem atirada para o lixo? O que vale o estilhaço de um electrodoméstico trazido pelo mar? Faça-se o exercício: observe-se com mais atenção esses objectos. A cor, a textura, a forma. Fora do seu contexto funcional, os objectos ganham uma potência, uma energia e uma vida muito particulares. Schwitters e Duchamp viram isso, Rauschenberg e Warhol também. Vários artistas tiveram essa visão com materiais diversos. Ricardo Nicolau de Almeida (RNA) viu isso no plástico. RNA recolhe restos de plásticos, que aparecem aleatoriamente nas ruas e nas praias. Fragmentos diferentes entre si, que o artista reordena, recompõe e recombina segundo uma visão estética radicalmente pessoal. Os materiais ganham uma ordem

Luxo

A ideia de que a morte deve ser o principal tema de reflexão e o objecto principal da atenção dos vivos nasceu com o luxo - com a abundância de reservas. Daí a estranha pergunta: perante coisas inúteis, em que pensar? Paul Valéry, Fragmentos narrativos. Tradução de Leonor Nazaré. Este livro é uma edição Dois Dias, casa editora que será apresentada na Sede, no próximo sábado, 25 de Março, pelas 17h00.

Mas um homem não é um cão.

«Seria possível a teoria dos reflexos condicionados de Pavlov levar as pessoas a obedecer à doutrina do Cristianismo?», pensou o Cardeal [Pölätüo] para consigo. Colocou uma folha de papel na sua macchina da scrivere e dactilografou com dois dedos: Para evocar reflexos são necessários estímulos. Os estímulos podem ser positivos ou negativos; exemplos: alimentos ou dor. Estes estímulos encontram-se nas mãos do poder secular, Temporal. Pensou mais um instante, após o que escreveu: Mas um homem não é um cão. Para um homem, os estímulos materiais são desnecessários. Para um homem, basta dizer que ficará confortável, ou que irá sofrer. E estes estímulos, positivos e negativos, estão acessíveis às mãos da Igreja. A campainha da máquina de escrever fez-se ouvir no final da linha. Pölätüo rodou o carreto. De repente, os seus dedos começaram a saltar sobre as teclas como se tivessem vontade própria. Mas esses estímulos já se encontram nas mãos da Igreja. São o PARAÍSO e o INFERNO! (...) E