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Na cabeça de Samuel Beckett

Tania Bruguera montou Endgame no interior da cabeça de Samuel Beckett. Por dentro, tudo é branco. Paredes brancas, chão branco, “tão branco, tão limpo”, ou melhor, sem cor, um «deserto». No centro, um homem cego, Hamm, preso a uma cadeira de rodas. Através de uma abertura na cabeça, outro homem, Clov, entra e sai, coxo, incapaz de se sentar. Clov é uma espécie de escravo de Hamm. A verdade, porém, é que Hamm depende de Clov, escravo do seu escravo. E ambos são escravos da cabeça de Beckett.



Em cima: o interior da cabeça de Samuel Beckett.

A cabeça de Beckett está apoiada numa impressionante estrutura espiralada em ferro (trata-se de uma grande cabeça, pesada, cilíndrica, a testa muito alta). O interior é inacessível ao público, excepto através de pequenas aberturas onde só cabe, justamente, a nossa cabeça. Sessenta cabeças dentro da cabeça de Beckett. Sessenta cabeças a observar o que ali se passa, a olhar directamente Hamm e Clov, olhos nos olhos, ou dito de outro modo, a olhar directamente as formas criadas pelo pensamento do autor.



Em cima: o exterior da cabeça de Beckett.

Mas o que vemos é apenas o que Beckett quer que vejamos. Quando a peça termina, retiramo-nos e abre-se um outro espaço em branco, um outro mistério: o que acontece no interior da cabeça de Beckett quando não estamos a espreitar? Que personagens habitam essa «pequena plenitude perdida no vácuo»? O jogo, na verdade, não tem fim. A partida continua dentro da nossa cabeça. As perguntas ressoam, formuladas por sessenta cabeças que espreitam por dentro de nós, como numa espécie de mise en abyme.

Estamos tão presos a este jogo como os personagens de Endgame. E ainda que consigamos mover-nos, ainda que não sejamos coxos, paralíticos ou cegos, ainda que consigamos entrar e sair da cabeça de Beckett, não saímos efectivamente para lado nenhum. «Do outro lado é… o inferno.» Mas o que é o «outro lado»? De que lado nos achamos? Não seremos nós os verdadeiros personagens de Endgame?

*

Dir-me-ão que isso é na minha cabeça, e parece-me com efeito frequentemente que estou no interior de uma cabeça, que estas oito, não, estas seis paredes são de osso maciço, mas daí a dizer que é na minha cabeça, não, isso nunca.
Samuel Beckett, Malone está a morrer. Tradução de Miguel Serras Pereira.

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