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Mensagens

Botânica

Georges Franju é um apaixonado pela botânica. Ou melhor, por um qualquer ramo secreto da botânica para o qual não existe nome. Olhos sem rosto começa e termina com árvores. Não existe praticamente um plano exterior onde não se aviste uma ou mais árvores. Altas, sombrias, vigilantes. E nas loucas tentativas do cirurgião Génessier em reconstituir o rosto da filha Christiane, desfigurado num acidente de carro, há a mesma obsessão botânica: o processo é idêntico ao de um enxerto. Génessier arranca a pele do rosto de outras raparigas e enxerta-o no rosto da filha. Ora, um enxerto é sempre uma forma de violência exercida sobre a natureza. E uma operação bem sucedida, tanto em botânica como na medicina, é sempre um triunfo do Homem sobre a ordem natural das coisas . No filme de Franju, porém, como em Frankenstein , de Mary Shelley, é a natureza que triunfa sobre a nossa vontade e os nossos sonhos de poder. No final, resta o corpo incompleto de Christiane, avançando como um fantasma por entre

Que seria de mim sem as minhas horas de escritório?

Tese 1 Porque o que dá valor à viagem é o medo. Ele destrói em nós uma espécie de cenário interior. Deixa de ser possível fazer batota - mascararmo-nos por detrás das horas de escritório e de fábrica (aquelas horas contra as quais protestamos tão fortemente e que nos defendem com tanta segurança do sofrimento de estarmos sós). Assim é que sempre tenho tido vontade de escrever romances em que os meus heróis dissessem: «Que seria de mim sem as minhas horas de escritório?», ou ainda: «A minha mulher morreu mas, por sorte, tenho um grande monte de expediente a redigir para amanhã.» Viajar tira-nos este refúgio. Longe dos nossos, da nossa língua, desligados de todos os nossos apoios, privados das nossas máscaras (não se conhecem as tarifas dos eléctricos e é tudo assim), ficamos inteiramente com a nossa aparência. Albert Camus, Amor à vida . Tradução de Sousa Victorino. Tese 2 Vilém Flusser costumava dizer que não tinha pátria, porque muitas pátrias se acumulavam nele. Sua «filoso

A roda do tempo

«O Oriente é a terra de tudo o que há de maravilhoso», escreve W. H. Wackenroder em Um maravilhoso conto oriental de um santo nu . Neste conto, Wackenroder relata a história de um «santo oriental» que, a certa altura, e na solidão da sua gruta, se convence que tem uma missão essencial a desempenhar no mundo: fazer girar a roda do tempo. Sem ele, a roda do tempo pararia e o mundo saltaria do seu eixo. Noite e dia, este ser maravilhoso não tinha descanso na sua estância. Parecia estar constantemente a ouvir, no interior dos ouvidos, o movimento circular e sibilante da roda do tempo. Perante este ribombar, nada conseguia fazer, não havia nada que pudesse empreender; a gigantesca e assombrosa angústia que continuamente o extenuava impedia-o de ver ou ouvir algo que não fosse o ruído da terrível roda, a girar e a girar, num tempestuoso e sibilante remoinho que chegava até às estrelas. (...) Os sons monótonos emaranhavam-se cada vez mais e de forma cada vez mais selvática: era-lhe impossív

Mais adiante!

É nas últimas sequências do filme de Aleksandr Sokurov que Fausto  revela toda a amplitude do seu incontrolável desejo de superação. Nada é suficiente, nada o satisfaz, «fervilha nele a febre da distância» (Goethe, v. 303). MEFISTÓFELES (Mauricius): Fizemos um pacto. Eu fiz tudo o que prometi, mas tu… FAUSTO: Não é suficiente para mim. Valho mais do que isso. MEFISTÓFELES: Que mais queres? Outro sol? Outro homúnculo? Dois, talvez? FAUSTO: Não é suficiente para mim! A ambição de Fausto não conhece limites. O Diabo é apenas um instrumento — como, de resto, também Margarida — da cega avidez deste «pequeno deus do mundo». Na verdade, Fausto assassina o Diabo, lapidando-o: o símbolo máximo do pecado morre sob as pedras lançadas pelo maior dos pecadores. A sequência anterior ao assassínio de Mefistófeles, junta os dois personagens diante de um géiser. É o momento crucial do filme. O ponto onde o velho mundo e a modernidade se separam irremediavelmente. Onde acaba o mistério e começ

O medo

No seu Quando as Ruas Queimam: Manifesto pela Emergência , você diz que nossa época vai passar para a história como o momento em que a crise virou uma forma de governo. Você está falando do medo que é gerado pela crise? Sim, como efeito. É importante entender como o discurso da crise se transformou num modo de gestão social. As crises vêm para não passar. Por exemplo, nós vivemos numa crise global há oito anos. Isso do lado socioeconômico. No que diz respeito aos problemas de segurança, vivemos uma situação de emergência há quinze anos, desde 2001. Ou seja, são situações nas quais vários direitos vão sendo flexibilizados, em que os governos vão tendo a possibilidade de intervir na vida privada dos seus cidadãos em nome de sua própria segurança. É muito mais fácil você gerir uma sociedade em crise. Então, a sociedade em crise é uma sociedade, primeiro, amedrontada; segundo, é uma sociedade aberta a toda forma de intervenção do poder soberano, mesmo aqueles que quebram as regras, quebr

Impressões de viagem

Café Central As paredes do Café Central, Central Kávéház , em Budapeste, estão quase integralmente decoradas com fotografias de escritores húngaros. Todo o cânone local. Consigo reconhecer Kosztolányi Dezsö, Attila József, Márai Sándor, Endre Ady, Géza Csáth e Orkëny István. Autores que, num momento ou noutro, já foram editados em Portugal. Mas há dezenas de outros nomes e rostos que desconheço por completo. Para um simples leitor português, a grande maioria não passa justamente de um nome e um rosto a preto e branco. Como uma espécie de homenagem ao «escritor desconhecido», morto em combate, na guerra interminável com as palavras e o vazio. Girassóis Ei-la, a estrada entre Budapeste e Belgrado. Um pormenor em linha recta num horizonte de infindáveis campos de girassóis. Não são plantas, mas espantalhos. Milhões de espantalhos, de pendentes e monstruosas cabeças, e de um só olho, enorme e triste, fitando a terra, nunca o sol. Ratko Lalić, Suncokreti , 2000. Prevod, Pr