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Que seria de mim sem as minhas horas de escritório?

Tese 1

Porque o que dá valor à viagem é o medo. Ele destrói em nós uma espécie de cenário interior. Deixa de ser possível fazer batota - mascararmo-nos por detrás das horas de escritório e de fábrica (aquelas horas contra as quais protestamos tão fortemente e que nos defendem com tanta segurança do sofrimento de estarmos sós). Assim é que sempre tenho tido vontade de escrever romances em que os meus heróis dissessem: «Que seria de mim sem as minhas horas de escritório?», ou ainda: «A minha mulher morreu mas, por sorte, tenho um grande monte de expediente a redigir para amanhã.» Viajar tira-nos este refúgio. Longe dos nossos, da nossa língua, desligados de todos os nossos apoios, privados das nossas máscaras (não se conhecem as tarifas dos eléctricos e é tudo assim), ficamos inteiramente com a nossa aparência.

Albert Camus, Amor à vida. Tradução de Sousa Victorino.


Tese 2

Vilém Flusser costumava dizer que não tinha pátria, porque muitas pátrias se acumulavam nele. Sua «filosofia da migração» nunca foi sistematizada, mas apresenta algumas teses instigantes, a partir da sua própria experiência de vida. Em primeiro lugar, o filósofo afirma que a dificuldade dos enraizados em lidar com os migrantes é sintoma não apenas de limitações ético-políticas, mas também de um adoecimento estético. A boniteza do lar habitual é a fonte do amor à pátria. Tudo que parece familiar reflete nossa própria face. O confortável parece bonito; já aquilo que é diferente, inusual, causa desconforto, parece feio. O que vem de fora é inabitual, estranho, incômodo. O patriotismo exacerbado é, portanto, uma incapacidade de perceber a beleza diferente do outro. Por isso o migrante é, para o enraizado, alguém ameaçador, que expõe a banalidade e a fragilidade do lar tido como sagrado.

O problema não é do migrante, mas daqueles que acreditam que têm raízes fixas em algum lugar. As «raízes» do homem representam uma ilusão sem futuro, pois na prática ninguém é enraizado. Falar de raízes para Flusser faz o homem parecer um legume: fixado inexoravelmente à terra. Ao contrário, a filosofia da migração flusseriana defendia que precisamos reconquistar o desenraizamento como nossa condição humana fundamental. A dignidade humana está na falta de raízes e na liberdade de permanecer estrangeiro, sempre a cada vez diferente dos outros, um outro com os outros: «A pátria do apátrida é o outro.» Por isso, só quem se sente estrangeiro na sua própria pátria é capaz de desenvolver também responsabilidade pelos que chegam à nossa casa, igualmente em processo de «despatriação».

É obvio que dá trabalho não ceder ao mito das «raízes a serem fincadas e defendidas a qualquer preço», e é por isso que Flusser considera a chegada dos migrantes enriquecedora para os moradores originais. Os migrantes são os desenraizados, que procuram desenraizar tudo a sua volta. Os migrantes nos obrigam  a rever nossos hábitos, que são como um cobertor de algodão que cobre todos os cantos e abafa os sons, é anestésico, esconde informações. O hábito faz tudo ficar bonito e tranquilo. Tira-se o cobertor e tudo fica monstruoso, inabitual, entsetzlich (deslocado/apavorante em alemão). Através dos migrantes surge a oportunidade de reaprender a própria casa com outros olhos, vislumbrando outras e melhores perspectivas para o viver em comum.

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