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Impressões de viagem

Café Central

As paredes do Café Central, Central Kávéház, em Budapeste, estão quase integralmente decoradas com fotografias de escritores húngaros. Todo o cânone local. Consigo reconhecer Kosztolányi Dezsö, Attila József, Márai Sándor, Endre Ady, Géza Csáth e Orkëny István. Autores que, num momento ou noutro, já foram editados em Portugal. Mas há dezenas de outros nomes e rostos que desconheço por completo.
Para um simples leitor português, a grande maioria não passa justamente de um nome e um rosto a preto e branco. Como uma espécie de homenagem ao «escritor desconhecido», morto em combate, na guerra interminável com as palavras e o vazio.




Girassóis

Ei-la, a estrada entre Budapeste e Belgrado. Um pormenor em linha recta num horizonte de infindáveis campos de girassóis. Não são plantas, mas espantalhos. Milhões de espantalhos, de pendentes e monstruosas cabeças, e de um só olho, enorme e triste, fitando a terra, nunca o sol.


Ratko Lalić, Suncokreti, 2000.


Prevod, Prevoz

Em sérvio, a palavra «tradução» escreve-se «prevod». E a palavra para «transporte» é «prevoz». As duas palavras têm a mesma raiz e uma simples gralha — e as gralhas abundam na Sérvia — transforma qualquer texto num princípio de poesia. A grande beleza do mundo, como sempre, começa nas palavras.


Atrás das ruas

Se existe uma «velha Belgrado», talvez seja esta cidade que se desvenda por trás das ruas, das fachadas reabilitadas e das lojas modernas. Nos pátios interiores, nas passagens e nas traseiras dos prédios e das casas. Nas antigas paredes e janelas tomadas pelas heras e arbustos. Como um livro cuja história começa a ganhar nitidez depois das primeiras páginas ou que, pelo contrário, jamais se deixará ler.




Vis

Até há poucos anos, um dos últimos símbolos vivos da história jugoslava era o Vis. O famoso navio da marinha de guerra, usado pelo Marechal Tito em férias ou para receber altos dignitários estrangeiros. Depois do fim da Jugoslávia, o navio foi comprado por um empresário croata, cuja intenção era transformar o Vis num iate de luxo. Sem dinheiro para completar o «projecto», o empresário decidiu afundar o navio, na baía de Polje, no sul da Ístria, em Maio de 2016. Hoje, oculto sob as águas, a 32 metros de profundidade, o Vis é uma atracção turística para amadores de mergulho recreativo. Um monumento mudo, coberto de areia, silêncio e algas. Não conheço imagem mais impressionante para ilustrar o fim de um país.




A ponte sobre o Drina

Dobro došli u Višegrad. Bem-vindos a Višegrad, a cidade bósnia da velha «Ponte sobre o Drina», celebrizada no romance de Ivo Andrić. À entrada, uma placa anuncia «a cidade do turismo». Depois das guerras civis, as autoridades locais transformaram o escritor e a «sua» ponte em atracções turísticas. O rosto de Andrić e o perfil da ponte estão por toda a parte: em pins, bonés, camisolas, em todo género de «lembranças» para turistas e também em grafítis espalhados pelos muros.
O fenómeno turístico atingiu proporções inverosímeis com a abertura do complexo Andrićgrad. Uma espécie de parque temático «bósnio», de «inspiração» sérvia, com a respectiva igreja ortodoxa — mas sem uma mesquita ou um templo católico —, casas, edifícios oficiais, cinema, lojas, confeitarias de influência austro-húngara, restaurantes e hotel. É uma criação literal de Emir Kusturica, cineasta e empresário do ramo turístico, e parece o cenário de um filme de época de Hollywood.
Entre as páginas de Ivo Andrić e a Andriclândia artificial de Kusturica, há um rio intransponível, e nenhuma ponte poderá jamais unir estes dois mundos.




Bibliotecas

O interior da mesquita de Gazi Husrev-Bey, em Sarajevo, está carregada de estantes com livros. Centenas de volumes, mais ou menos luxuosos, de diferentes dimensões e cores, aguardam silenciosamente os seus leitores. O cenário repete-se em todas as mesquitas da cidade, do país e do mundo. Uma biblioteca descomunal de um só texto e um só livro.




Esferográficas e aviões

Nos mercados de Sarajevo e de Mostar, os artífices transformam balas em esferográficas. E com balas constroem também pequenos modelos de aviões militares e peças de artilharia. Lembranças relativamente baratas e muito apreciadas pelos turistas. Como o «Lado A» e o «Lado B» de uma estranha e grotesca metáfora.




Montanhas

As montanhas da Bósnia e da Herzegovina são as mais belas que alguma vez vi. Quilómetros e quilómetros de escarpas, delineadas numa paisagem de inconcebível pureza, entre bosques luxuriantes e rios de águas transparentes. De vez em quando, uma casa ou uma pequena aldeia onde não vive ninguém. Onde não é possível viver: o terreno está parcialmente coberto de minas. A guerra devolveu à natureza a terra que lhe pertence e sempre pertencerá.
Um ditado popular diz que se alguém passasse a ferro as montanhas da Bósnia-Herzegovina, conseguiria cobrir a Europa inteira. E a verdade é que sempre que se tentou «mudar» a Bósnia, uma perigosa nuvem de cinza pairou sobre a Europa.



Rajko Popivoda, Pritisak, 2004.

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