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Mais adiante!

É nas últimas sequências do filme de Aleksandr Sokurov que Fausto revela toda a amplitude do seu incontrolável desejo de superação. Nada é suficiente, nada o satisfaz, «fervilha nele a febre da distância» (Goethe, v. 303).

MEFISTÓFELES (Mauricius): Fizemos um pacto. Eu fiz tudo o que prometi, mas tu…
FAUSTO: Não é suficiente para mim. Valho mais do que isso.
MEFISTÓFELES: Que mais queres? Outro sol? Outro homúnculo? Dois, talvez?
FAUSTO: Não é suficiente para mim!

A ambição de Fausto não conhece limites. O Diabo é apenas um instrumento — como, de resto, também Margarida — da cega avidez deste «pequeno deus do mundo». Na verdade, Fausto assassina o Diabo, lapidando-o: o símbolo máximo do pecado morre sob as pedras lançadas pelo maior dos pecadores.

A sequência anterior ao assassínio de Mefistófeles, junta os dois personagens diante de um géiser. É o momento crucial do filme. O ponto onde o velho mundo e a modernidade se separam irremediavelmente. Onde acaba o mistério e começa a ciência.

MEFISTÓFELES: Já estás contente?
FAUSTO: Como é que isto funciona?
MEFISTÓFELES: Não preciso de saber. O Senhor é que sabe. Vamos embora, isto é perigoso.
FAUSTO: Deus não sabe! Mas eu sei! O calor sobe e o frio afunda-se no interior da terra… Podia recriar isto num instante.
MEFISTÓFELES: Anda, vamos embora.
FAUSTO: Não, eu fico aqui.
MEFISTÓFELES: Ele quer recriar a minha fonte. Queres alcançar a glória?
FAUSTO: O acto é tudo, não a glória! (Falando directamente para o géiser) Pára! Já sei tudo sobre ti. Deixa-me em paz, buraco inútil! Eu é que decido tudo aqui!

Nietzsche anuncia a morte de Deus. Fausto, por seu turno, não só assassina o Diabo, como dessacraliza a natureza e considera-se capaz de a dominar. Para que estranho e perigoso «novo mundo» nos conduziu o Iluminismo? Ou melhor dito, os vários iluminismos? Até onde nos levou a aspiração e o desejo fáustico de permanente superação dos limites?

Numa entrevista recente, conduzida por António Guerreiro, o filósofo Frédéric Neyrat sugere várias pistas sobre o assunto, partindo do conceito de «geoconstrutivismo». Dir-se-ia que as reflexões de Neyrat funcionam como comentários ao filme de Sokurov:

Geoconstrutivismo é um dos avatares da modernidade, do pensamento moderno, que defino como aquele pensamento que se fundou na ideia de que o ser humano tinha a capacidade de poder não apenas dominar e possuir a natureza, como dizia Descartes (um dos filósofos fundadores desta modernidade que a ecologia teve de combater), mas vai ainda mais longe: dominar e possuir a natureza são as etapas que conduzem à capacidade de a refazer, de a reconstruir. Aquilo a que chamo “geoconstrutivismo” é a ideia segundo a qual os seres humanos têm a capacidade e mesmo o dever de reconstruir inteiramente o universo no qual habitam, isto é, a Terra. Geoconstrutivismo é reconstruir a Terra, mas a Terra já existe e já existia antes de nós. O sonho, o fantasma, do ser humano é o de que tem a capacidade e até a missão de refazer essa Terra.
(...) 
Antropoceno significa, literalmente, a idade do homem, a idade em que o homem se torna a força maior, uma força ainda mais poderosa do que a força natural. Pense-se nas alterações climáticas: são hoje muito mais o efeito da actividade do homem do que o efeito de simples leis imanentes da atmosfera. O que o conceito de Antropoceno não toma em consideração é a cena inconsciente que o habita, isto é, fazer a Terra baseia-se no sonho de a dominar inteiramente. E como se pode provar que se consegue dominar qualquer coisa inteiramente? Refazendo essa coisa. Se podemos refazer, é porque somos como um demiurgo.

No Fausto de Sokurov, as últimas palavras de Mefistófeles, antes de morrer, são uma premonição do nosso destino moderno. Mais humano do que Fausto, não há nele sombra de rancor, apenas um lamento pela escolha que fizemos, uma espécie de despedida amorosa:

MEFISTÓFELES: Quem te alimentará? Quem te conduzirá para fora daqui?

Fausto já não escuta Mefistófeles. Ele fez a sua escolha. No último plano do filme, é já só um espectro no horizonte. Um louco cheio de desejo e ousadia, animado pelo demónio de si mesmo a avançar para a sua própria destruição. E no meio da sua tragédia — que é a de todos nós —, grita ainda entre gargalhadas: «Mais adiante!»

Frédéric Neyrat comenta:

Creio que o sinal da catástrofe se tornou evidente para todos. (...) No entanto, continuamos a acreditar que há a possibilidade de escaparmos.

Não há sentimento mais fáustico do que o nosso optimismo.

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