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Mensagens

Trocadilho

No Ateneu Comercial, há dois bustos a ladear a escadaria de acesso à biblioteca: um de Camilo e outro de Ramalho Ortigão. Acontece que, por descuido ou de forma deliberada, alguém dispôs o busto de Camilo no pedestal do Ramalho e o de Ramalho no pedestal do Camilo. Eis uma espécie de trocadilho que nenhum dos dois desdenharia.
1914 Temos tendência para confundir a fala de um chinês com um gorgolejo inarticulado. Alguém que compreenda mandarim reconhecerá, no que ouve, a língua . Muitas vezes, não consigo, analogamente, distinguir num homem a humanidade . Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, tradução de Jorge Mendes, Edições 70.

Observações avulsas sobre a boavista #17

Descer a avenida pelo lado direito. Atravessar a ponte sobre a via de cintura interna quase até ao fim. Parar um tempo por cima dos carros e camiões que passam velozes em direcção à Arrábida. Abarcar a estrada, os veículos, os painéis e a vegetação que cresce a monte — no mesmo plano. Esqueçam Serralves, o melhor sítio na Boavista para perceber a arte contemporânea é aqui.

Entre o céu e a terra

Estou a pensar naquela árvore que Ritwik Ghatak mostra no primeiro plano de «Meghe Dhaka Tara» e que surge várias vezes ao longo do filme. Uma espécie de enorme nuvem presa ao chão pelo tronco. Essa criatura, meio árvore, meio nuvem, a meio caminho entre o céu e a terra, lembra-me o Manuel Resende .

Uma cena tipo Stephen King

Não são apenas os erros, quando leio o que escrevi nem sempre reconheço o sentido original, noto desvios — às vezes não percebo nada. Deve ser por isso que escrevemos, para encontrar essa sensação esquisita de chegar a um território desconhecido, para perder a estabilidade. Mas há mais: indiferente à nossa vontade, a língua movimenta-se como uma coisa viva — uma serpente. A escrita contendo em si um arrepio de medo e exaltação.

Erros sucessivos

Quando escrevi “talvez os seus aforismas não surjam de um pensamento analítico sustentado” , enganei-me. Só me apercebi da gralha mais tarde. Corrigi. Aforisma  utiliza-se em medicina e designa “hematoma resultante da ruptura de um vaso sanguíneo”. As palavras têm um sentido clandestino e autónomo que vê tudo com mais clareza. Corrigir é um erro maior.

Liquidação

E ainda a propósito do sentido das palavras : Somos feitos de palavras. São o nosso limite e ilimite. Ético. Estético. Político. Com elas nos exprimimos, atrás delas nos escondemos. São mentira reveladora, verdade tímida, meia verdade. Carregam a nossa impotência e embriagam-nos com o seu poder. Apesar da omnipresença das imagens, as palavras passaram a ser o suporte mais forte da pós-verdade. A par das fake news , que inundam a cena política, o recurso ao fake knowledge , amiúde assente no name dropping , tem vindo a vulgarizar-se a ponto de haver quem defenda, com falsa candura, que tudo é o que é e o seu contrário. Só assim se explica que proibir pretensamente signifique permitir que alguém se coíba... (...) Repare-se, por exemplo, na utilização pelos programadores dos Teatros Municipais do termo “ocupar” (1000 razões de ocupar o teatro) que, remetendo para factos ocorridos num passado assaz recente – a saber: a luta contra a privatização da gestão do Rivoli –, aposta no seu t

A balança bem calibrada de Steiner

Pode parecer um bocado acintoso entalar George Steiner no meio de textos sobre Cioran. Não foi de propósito, calhou assim. Também não me apeteceu disfarçar até porque, se parar para verificar os  raciocínios, ainda acabo a concordar com o que Steiner escreveu sobre Cioran (por exemplo, procurar aqui “Short Shrift”). Steiner tem uma balança bem calibrada para as letras , sei disso. E sim, talvez haja nos lamentos de Cioran uma facilidade ominosa. Talvez os seus aforismos não surjam de um pensamento analítico sustentado. Talvez a sua tristeza seja preguiçosa, repetitiva e demasiado declamada. Talvez Cioran seja um moralista teatral sem argumentos de ferro, sem roupas, sem reino. Mas não é por isso que gosto menos dele — das suas palavras de meteco ou dos seus pensamentos esbotenados. Também as nossas inclinações intelectuais saem muitas vezes de um não sei quê obscuro e antigo . É  como o cheiro das laranjas, é preciso aguentar.

Non, rien de rien.

Cioran só começa a escrever em francês aos 37 anos. Há várias maneiras de explicar esta decisão, ele próprio fala bastante sobre o assunto. Mas, conforme vou lendo e traduzindo, mais me convenço que foram as variadas formulações negativas disponíveis que atraíram Cioran para a língua francesa. Mesmo para afirmar qualquer coisa, é possível atirar uma frase com uma negativa indirecta ou exclusiva. Escrever assim é como andar de costas — inequivocamente o movimento que melhor convém a um filósofo de sobrolho franzido. Em última instância, o francês oferece ainda a dupla negativa — um verdadeiro rodopio centrípeto junto ao abismo. Que mais poderia Cioran ambicionar? Ah, sim, umas gotas de sangue. A negação não sai nunca de um raciocínio, mas de um não sei quê obscuro e antigo. Os argumentos vêm depois, para a justificar e apoiar. Todo “não” surge do sangue.

Influenciadores do século XX

cf. Peter Marlow - GB. Cambridge. George STEINER

Take care of your belongings

No metro de Lisboa, os painéis informativos aconselham os passageiros a ter cuidado com os seus pertences. Há tanta coisa que só a mim pertence e que infelizmente não cabe na mochila ou nos bolsos. Tanta coisa que agradecia que me tirassem, sem drama e alvoroço, como no carteirista de Bresson.
Da humidade e do cotão — uma perspectiva sobre a obra de João César Monteiro Podia ser uma tese de setecentas e tal páginas com frases transparentes e pensamentos densos, densos de tudo aquilo que se lhes escapa .

Início da primavera

Atrofia do verbo

Gosto do modo desembaraçado como Cioran atribui características físicas às palavras. Nos seus livros, a linguagem é uma entidade viva ou, pelo menos, ainda viva . O definhamento e a doença já estão agarrados à pele das frases, mas ainda há uma respiração, uma rala cavernosa. Não sabemos se os pensamentos se safam ou não. Se cheira a lírios ou a cadáver.

Pequenas notas sobre um grande amigo

Habituei-me a imaginar que o Manuel Resende sobreviveria a tudo. Em 2017, esteve hospitalizado durante semanas em estado muito grave. Alguns amigos temeram perdê-lo. A verdade é que voltou directamente dos cuidados intensivos para lançar a «Poesia Reunida», em 2018. O livro de poemas português mais importante deste século. Cada novo leitor que esse livro conquistou é como um sinal de que o nosso mundo entrou nos eixos. A grande poesia do Resende deixou de ser um segredo guardado por meia dúzia de leitores fanáticos. O mapa literário do país assumiu, por fim, a forma correcta. O Resende não jogou uma única carta neste jogo. Não fez nada para que os poemas fossem mais ou menos conhecidos. Não lhe competia a ele. Ele era apenas um poeta. Escrevia porque tinha de escrever. Os três livros que publicou, antes da «Poesia Reunida», de 2018, surgiram por intervenção de amigos ou em resposta a convites de editores. A «Poesia Reunida» também. Não foi o Resende que a propôs e não foi ele q

A reflexão e a acção

A certa altura do teu mail anterior dizias: «Parece-me que é entre estes dois pontos que a nossa vida se joga: a reflexão e a acção.» É curioso, isto faz-me lembrar as plantas. Elas têm uma parte reflexiva e uma parte activa. A parte reflexiva é a parte das folhas, que estão ali à espera que venha o ar e o sol dar-lhes o CO2 e a luz de onde extraem 88% da sua massa. A parte activa são as raízes que furam o solo e exsudam açúcares para os microorganismos que, em troca, lhes dão azoto, potássio, quelatos de ferro, etc., e oligo-elementos, isto é, o resto, muito pouco, da sua massa. Bem, tenho consciência de que isto tudo é um pouco confuso, mas pronto. Um abraço.  manel

Na Provença à procura da orelha de Van Gogh

Na Provença à procura da orelha de Van Gogh Essa orelha que nem o amor criterioso da honrada família Conseguiu preservar do esquecimento, Pobre orelha a que mais ninguém ligou E que está se calhar esperando o seu dono Que não volta, Nessa Provença é que eu estou. A verdade é que nem eu a encontrei, Mas, também, como os outros, não perdi muito tempo a procurá-la. Salvem-se os quadros, vendam-se os quadros Guardados pela criteriosa família E até por descuidados provençais - é o essencial. A orelha, que se lixe, não se pintam quadros com orelhas. As orelhas são para os músicos, e mesmo esses, Às vezes já só tocam música interior. Vicente, meu velho, em verdade te digo, Que por aqui as plantas andam a tentar imitar-te E, tantos anos depois, ainda não conseguiram. Elas bem se torcem, elas bem chamam o sol, Que todo se estremece, Elas bem se encostam ao céu, Elas bem se verde, elas bem se azul, elas bem se amarelo. Eu sei, eu sei, Vicente, muito te custou, Talvez até