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Mensagens

Ponto, linha. Nada.

Natasha sai para comprar pão e deixa o pai e Jeanne a preparar o jantar — é uma estratégia de aproximação. Eles quase não se conhecem, sentam-se à mesa, um ao lado do outro, de frente para a câmara: Jeanne corta salame, Igor corta tomates. Nem prestei atenção ao que dizem, todo o interese vai para os movimentos dos corpos. É um dos clímaxes do filme (directo para a lista de cenas com pessoas a descascar e cortar coisas de comer). Mas o melhor do filme não é um ponto, é uma linha — algo que se desenrola do princípio até ao fim: não se passa nada (lista de filmes onde não se passa nada). Como diz Rohmer, quando parece que vai acontecer alguma coisa, não acontece. Tirando o desaparecimento e descoberta do colar (Hitchcock e Poe em versão primaveril), nada mais. Isso — chamemos-lhe buraco, ausência, vazio ou nada —, muito mais do que as conversas temáticas, é que faz de Conto da Primavera um filme extremamente filosófico (lista negra).

Alternativos e independentes

Já lá vai uma geração desde o colapso do Muro de Berlim. Nas décadas de 1960 e 1970, o capitalismo teve de se confrontar com o problema de como controlar e absorver as energias vindas do exterior. Hoje em dia, o capitalismo depara, aliás, com o problema oposto; tendo incorporado com demasiado sucesso a externalidade, como poderá funcionar sem um exterior que possa colonizar e do qual possa apropriar-se. (...) Veja-se, por exemplo, o estabelecimento de zonas culturais «alternativas» ou «independentes» estáveis, que repetem infindavelmente gestos mais antigos de rebelião e contestação como se pela primeira vez. «Alternativo» e «independente» não designam algo exterior à cultura dominante; ao invés, são estilos, os verdadeiros estilos principais, aliás, no seio da cultura dominante. Mark Fisher, Realismo Capitalista - Não haverá alternativa? Tradução de Vasco Gato.

Bufonaria

A conferência de imprensa de Rudy Giuliani no parque de estacionamento da Four Seasons Total Landscaping é tão extravagante e, ao mesmo tempo, tão conforme à verdade e tão eloquente. Uma pequena empresa de jardinagem junto a uma saída de Filadélfia. Entre um crematório e uma loja de livros e outros objectos para adultos ( Fantasy Island ).

Era apenas um recado

Traduzir deixa em nós restos doutra maneira de falar. Parece que alguém desconhecido decide as palavras e até o ritmo da frase, pelo menos durante um certo tempo. Sem querer, dou por mim a disparar palavras negativas de rajada : não, nunca, ninguém, nada, nem — todas na mesma linha, quase encostadas. Ultrapasso a  dupla negativa  e era apenas um recado.

Comédia de Deus

Henri Lefebvre escreve: «Em 1921, para um filme de Marcel Duchamp, é pedido a Man Ray que rape os pêlos púbicos da muito excêntrica baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven; o filme foi destruído durante a sua revelação.» Os pêlos da baronesa aparecem várias décadas mais tarde na colecção secreta de João de Deus, no filme Comédia de Deus , de João César Monteiro.

Composto para o refrigério dos espíritos

Cioran é um tipo esquisito — nisto todos concordam. Está na filosofia como se estivesse sentado na esplanada do café, ensimesmado, sempre a ruminar nos mesmos assuntos, cabelo no ar, leituras e releituras a mais, praticando um francês de meteco, sem pensamentos excepcionais mas, acima de tudo, sem método nem maneiras (aliás, acho que é por isso que a academia e a crítica encartada o rejeitam ou, pelo menos, torcem o nariz aos seus aforismos aflitos). A objecção mais comum é que ele repisa o que já foi dito e pensado e é muito teatral (ahah! o espírito balcânico). Um chato ou um charlatão da disciplina que não chega aos calcanhares de não sei quem. Os ataques atingem o alvo, é verdade, mas apenas porque a noção de filosofia usada é bastante burocrática. Precisamos de um conceito mais dinâmico — os êmbolos do pensamento ao ritmo dos pedais . Se Cioran não diz (quase) nada de novo, di-lo, ainda assim, de uma forma incomum e torrencial. Privilegia a linguagem vulgar, as palavras banais da

Dia e noite

Muitas vezes ponho-me a pensar nos eremitas de Tebaida, que cavavam uma sepultura para aí derramar lágrimas dia e noite. Quando lhes perguntaram a razão da sua aflição, responderam que choravam a sua alma. Lágrimas e Santos, Emil Cioran (tradução a partir da versão francesa).

Ninguém responde

Na frutaria, dois ou três clientes escolhem, em silêncio, laranjas, maçãs ou dióspiros. De repente, uma mulher entra e pergunta em voz alta: «Ontem à noite, dormiram bem?» É uma mulher pequena, de uns setenta anos. Repete a pergunta, muito séria, plantada no meio da loja. Ninguém responde. Gostava de conseguir responder, mas não sei o que dizer. Talvez esteja simplesmente a sonhar que estou acordado.

Confinamento (dia dos mortos)

Marilyn Monroe apanhada a ler "Lágrimas e Santos" na cama.

Duvido de que alguma vez tivesse chegado a escrever uma linha

Ao olhar para Rimbaud vejo-me ao espelho. Nada do que diz me é estranho, por mais feroz, absurdo ou difícil de perceber que seja. Para compreender é preciso dispormo-nos a um acto de rendição, e recordo-me perfeitamente dessa rendição no primeiro dia em que olhei para a obra de Rimbaud. Nesse dia, há pouco mais de dez anos, li apenas algumas linhas e, tremendo como uma folha ao vento, pus o livro de lado. Tive nessa altura a sensação, e ainda a tenho, de que ele tinha dito tudo o que há para dizer no nosso tempo. Era como se ele tivesse colocado um telhado sobre o vazio. É o único escritor que li e reli com um prazer e uma excitação que nunca diminuíram, encontrando nele sempre qualquer coisa de novo, sempre tocado profundamente pela sua pureza. Seja o que for que diga dele há-de ser sempre aproximativo, sempre uma tentativa, no melhor dos casos um aperçu . É o único escritor cujo génio invejo; todos os outros, por maiores que sejam, nunca despertaram em mim inveja. E acabou aos dezan

A Veneza do bairro

As gôndolas avançam. Deslizam suave e silenciosamente, em todas as direcções. Há uma certa música no ar. Por trás das máscaras, os gondoleiros navegam nas águas paradas dos seus próprios sonhos. Percorrem os corredores do supermercado, entre a peixaria e o talho, em busca das promoções.

Energia e fluidos

Abro os Poemas de Álvaro de Campos (Pessoa), e deparo com "Seja o que for, era melhor não ter nascido".  Quoi qu’il en soit, mieux valait n’être pas né . Na tradução de uma carta de Pessoa, o tradutor emprega a expressão "crise psíquica". Devia ser: “crise moral", pois não se trata de um desânimo qualquer, mas de uma revisão da sua atitude para com os seus semelhantes. Em Pessoa, é quase a crise de Tolstói. Uma crise de ordem moral, portanto. Emil Cioran, Cadernos, janeiro de 1970 e janeiro de 1969

O mistério

Um manto de silêncio abateu-se sobre os supostos avanços na produção de uma vacina. Há semanas que não há notícias relevantes sobre o assunto. Mil laboratórios numa roda-viva. E, no entanto, o vírus continua sem revelar o seu segredo. O mistério recuperou o seu lugar no mundo. O mistério que nos perturba tão profundamente e que é tão humano como a crença no poder da ciência. É tudo tão velho e tão novo ao mesmo tempo.

Insónia absoluta

Acordo às três ou quatro horas, daí em diante o sono transforma-se em farrapos e voltas na cama. Podia procurar causas normativas, mas na verdade acho que é a influência de Cioran — a palavra estupor brilha como uma bola de espelhos.

Pergunta

Tudo começou com a pergunta de um estudante, diante de um aparente enigma eleitoral da cidade do Salvador. “Por que negros e mulheres são claramente a maioria nesta cidade, mas elegemos em geral homens, brancos e ricos, mesmo quando há candidaturas de negros, mulheres e pessoas com origem na periferia com que a maioria da população poderia se identificar?” Aqui.

Livro I, capítulo I, primeira palavra.

Esta manhã, vimos a exposição de R.H. Quaytman. Quase no fim, há um quadro onde a artista representa um livro - toda a exposição é organizada em torno das ideias de livro e de capítulos de um livro - com a inscrição «Book One: Fear». É perfeito. O capítulo inicial de qualquer livro deveria intitular-se «Medo». E a primeira palavra de qualquer primeiro capítulo também. É aí que tudo começa.

Regras de etiquetas

Ultrapassou os influenciadores, a pandemia e a quarentena; ultrapassou até o venerável Ludwig Wittgenstein. Cioran ( ah, cet enfoiré ! ) alastra neste blogue como um vírus.