Avançar para o conteúdo principal

Dia e noite

Muitas vezes ponho-me a pensar nos eremitas de Tebaida, que cavavam uma sepultura para aí derramar lágrimas dia e noite. Quando lhes perguntaram a razão da sua aflição, responderam que choravam a sua alma.

Lágrimas e Santos, Emil Cioran (tradução a partir da versão francesa).

Comentários

Raul Padilha disse…
Belo trecho. "Tebaida" vai pra minha coleção de palavras silvestres. Colocarei na mesma caixa de sapatos onde estão "Medina", "Macondo" e "Pasárgada".
---
Com esta prosa de armarinho, apelando invariavelmente ao charme nervoso de toda miscelânea, Cioran parece encaixar-se perfeitamente naquele fenômeno descrito por Frank Lestringant, a tal "ficção de erudição", a qual consiste em dispor, de maneira profusa e desordenada, da autoridade de autores antigos, bem como das anedotas e 'fait divers' da História, afim de tornar o texto o mais agradável (posto que variado e "colorido") possível.
Lestringant investiga as obras de um esquecido cosmógrafo do renascimento: André Thevet, um caso exemplar deste procedimento duvidoso.
Ao comentar o modo como Thevet cita, em determinado momento, autores como Catulo e Cícero, Frank põe a baixo este método fortemente "tautológico" de comentário:
" [...] o objetivo dessas referências, mesmo que alusivas, não é de forma alguma a busca de uma verdade científica ou resolução de uma grave aporia! [...] o que está em jogo na questão levantada, em um texto constantemente digressivo que não desemboca jamais num balanço ou numa conclusão?"
Note-se que Frank é até bem benévolo em sua crítica. Se, como exclamaria Álvaro de Campos, "a única conclusão é morrer!", ainda sim faz-se necessário ao menos um "balanço" geral do que foi encontrado ou perdido numa busca dialética, filosófica ou afim. Cioran furta-se de mostrar tanto uma quanto outra.
Logicamente, o leitor também é afetado ao ler estas espécies de bricolagens eruditas:
"O 'autor Thevet' não é o único a ganhar com esse jogo de nominação e acumulação de autoridades, alinhadas em listas heteróclitas e inverificaveis de imediato. [Cioran também não costuma citar suas fontes, mesmo que de maneira informal] A contrapartida de um prestígio adquirido sem grandes custos é a nova dignidade da qual o leitor se vê investido. Cúmplice de uma ilusão que o adula, cabe-lhe apenas entrar de bom grado na 'ficção de erudição'."
Quão maravilhoso torna-se então saber que tais eremitas faziam isto e aquilo de espetacular! Na prosa de bijuteria, o leitor embarca justamente por causa do fascínio provocado pelos conhecimentos enciclopédicos gratuitos, afinal "Permite-lhe exibir, por sua vez, essas flores raras e diversas". O que importa é a ostentação.
É excitante pretender a defesa de Cioran: nada dá mais ardor aos adeptos de qualquer crença do que a certeza de lutar por uma causa perdida.
Raul Padilha disse…
Fernando Pessoa (ou deveria dizer apenas Bernardo Soares?) diferencia-se de Cioran neste quesito. No livro do desassossego é escasso os comentários versando acerca de obras, autores ou acontecimentos históricos externos ao cinzento espaço da rua dos douradores.
Tanto Bernardo quanto Cioran possuem um ritmo, no mais das vezes, monótono (embora brilhante -- isto, é claro, não configura-se exatamente como uma contradição em termos). Mas Bernardo é maior pois logrou o despojamento, o abandonar-se aos seus sonhos, reservando fidelidade apenas para eles.
--
Aliás, só mesmo Soares poderia defender Cioran:
"A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo". (Fragmento 229)
Acabo de ler um livro que não passa de pura bricolagem erudita. Chama-se "As peças que faltam", de Henri Lefebvre. É um livro maravilhoso.
c disse…
Esse livro é porreiro :)

E dá para acrescentar items e apartes.

Leste o que ele escreveu sobre o Peter Handke? Deve ser a crítica mais violenta e é apenas uma linha?
"O homem Peter Handke."
;)
Raul Padilha disse…
Agradeço a dica de leitura Rui. Pena que aqui no Brasil ainda nenhuma editora interessou-se em publicar esta obra específica do Lefebvre. Mas ficarei atento nos lançamentos das livrarias.