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Les fruits secs de la vie

Voltei ao Cioran. Ao traduzir uma anotação dos Cadernos de finais de 1967, encontrei um insulto esquisito: fruits secs — assim mesmo no plural e com um sentido que não está registado nos verbetes dos dicionários. Depois de pesquisar, percebi que era um insulto do século XIX (Cioran tem esta capacidade maravilhosa de agarrar o que há de mais vivo numa língua, venham as palavras do passado ou do futuro). Historicamente, a expressão é muito rica e esteve prestes a sair da redoma do francês, bastava que Flaubert não a tivesse descartado para título do que viria a ser A Educação Sentimental . No entanto — e apesar de não faltarem por aí frutos secos —,  duvido que no nosso tempo pudesse surgir um insulto deste tipo, nem sequer em França. Seria necessário, pelo menos, exagerar um pouco o atributo para instaurar alguma estranheza:  murcho , ressequido ou até mesmo mirrado .  Quanto à tradução, podemos fazê-la à letra explicando numa nota de rodapé o sentido figurado: não se trata de um fru

Píca-ro

Em vez de escrever, digo mal de todos os que escrevem. Um falhado é isto. Lembro-me daquele pintor, numa aldeia de Perche, que borrava as paredes dos restaurantes (paisagens horríveis com um lago, etc.) e dizia mal de todos os seus colegas, a começar por Picasso a quem chamava «Píca-ro»! O azedume só é aceitável ao nível especulativo, no estado de pura abstração: fel decantado . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 É muito raro, mas às vezes as traduções correm tremendamente bem: precisamos de uma palavra que encaixe (é disso que se trata: encaixar as palavras nos sítios certos, agradar à semântica e à fonética, fazer tudo com justeza e sem nos estatelarmos no chão) e encontrámos uma que se ajusta como na língua original. Neste caso foi “Píca-ro” lançado contra Picasso. Se estivesse na Graciosa, atirava uns foguetes ao ar.

Cem cigarros

Disseram-me que a minha irmã fumava cem cigarros por dia! Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (escrito em maio de 1967, seis meses depois da morte da sua irmã Virginia)

Armado de escrúpulos

Se alguma vez um mortal foi atormentado, supliciado pelas dúvidas sobre si mesmo, esse mortal sou eu. Em tudo. Quando entrego um texto a uma revista, a minha primeira ideia é reavê-lo, retocá-lo e, sobretudo, abandoná-lo. Não confio em nada do que faço e penso. E se tenho uma certeza, é da desconfiança de mim mesmo — o que põe em causa não só as minhas capacidades, mas também os fundamentos e a razão do meu ser. Estou literalmente armado de escrúpulos. Como é que pude, nestas condições, empreender seja o que for e, com tantas perplexidades, decidir-me pelo menor acto, pelo menor pensamento? Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

E depois, que importa chamar idiota a alguém?

Esquecemos aqueles que insultamos e magoamos; mas eles não se esquecem de nós. (Penso num determinado poeta que me persegue com o seu ódio: parece que lhe disse coisas desagradáveis numa discussão sobre Sainte-Beuve; mal me lembro disso. As palavras que dizemos sobre os outros só a eles dizem respeito, não lhes prestamos atenção. E depois, que importa chamar idiota a alguém?) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

À maneira japonesa

O autor de um artigo sobre o Zen relata que um missionário cristão, que estava no Japão há dezoito anos, ao todo não converteu mais do que sessenta almas. Que, ainda por cima, escaparam dele no último momento. Todos esses convertidos morreram à maneira japonesa, sem tormentos nem remorsos, como se ao nascer não tivessem pousado mais do que um pé sobre a terra .  No fundo, o desapego não se aprende, está inscrito numa civilização. Não é um objectivo, é um dom . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Metáfora coerente

Li num livro — antiquado — sobre a linguagem que uma metáfora «deve poder ser desenhada». Tudo o que se faz de «válido» em literatura desde Rimbaud, tendo sido ele o iniciador, é a negação desta definição que, verdade seja dita, só se aplica aos clássicos ou à literatura de inspiração didáctica. A metáfora coerente já passou.  Dez séculos de rigor, de metáfora coerente, de linguagem esclerosada foram abolidos em poucos anos, em parte graças ao surrealismo, à moda de Rimbaud, às influências da ciência. É neste estado de linguagem deslocada que é possível traduzir pela primeira vez para francês autores até agora considerados intraduzíveis. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Torre Bela, Roménia

Conta-me um amigo que durante a propaganda da colectivização, numa aldeia perto do Danúbio, tentou convencer um camponês da superioridade dos novos métodos e das vantagens que teria em trabalhar em horários fixos, em comum, como um funcionário, do rendimento mais elevado, etc., etc., etc. Mas o camponês, prudente, não quis dizer nem sim nem não, apenas apontou, em jeito de resposta, para um pássaro que acabara de voar sobre as suas cabeças. Não ousou falar de liberdade, mas teve a coragem de designar o seu símbolo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Bicharada

25 de dezembro de 1959  Recebo um postal de natal de um poeta espanhol, com a reprodução de um rato.  Símbolo, diz ele, de tudo o que podemos «esperar» do ano de 1960. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Os meus livros

Foi à base de estimulantes (café, tabaco) que escrevi todos os meus livros. Desde que me é impossível tomá-los, a minha «produção» caiu para zero. Do que depende a actividade do espírito! Todos os meus livros são meios-livros, ensaios no verdadeiro sentido do termo. Desperdicei em conversas, sobretudo na juventude, o melhor de mim mesmo. Os meus livros, tanto romenos como franceses, não são senão um reflexo muito miserável do que era, do que sou. Os monólogos frenéticos de outrora não subsistem sequer na minha memória. Consumi-me com uma generosidade de que agora sinto a falta; gasta, dela só restam fragmentos. Mesmo que ainda a possuísse, já não a podia suportar, sustentá-la fisicamente , por falta de energia e vitalidade. Para certas virtudes é preciso um certo corpo. Os meus livros podem não ser bons — mas pelo menos têm o mérito de surgir de todos os meus sofrimentos. Quando estava a escrever o Breviário , lembro-me de afirmar com bastante frequência: «Vou ajustar contas com

Azar do Foucault

As Palavras e as Coisas  ficou entalado entre dois livros de Cioran ( Breviário de Decomposição #62 e as Lágrimas e Santos #65) . Nos Cadernos , há duas anotações sobre o livro de Foucault escritas em abril de 1967. São críticas irascíveis, como é hábito, mas também se podem qualificar de divinatórias de circunstância :  No livro de Foucault As palavras e as Coisas , que não tenho vontade nenhuma de ler, encontrei uma frase em que ele põe Hölderlin, Nietzsche e Heidegger ao mesmo nível . Só um universitário podia cometer tamanho erro de lesa -génio. Heidegger, um professor ao lado de Nietzsche e Hölderlin! — Isto faz-me lembrar aquele crítico que se permitiu escrever: «de Leopardi a Sartre» — como se de um ao outro pudesse haver a menor filiação. Um poeta, um espírito supremamente verdadeiro de um lado, um intrujão talentoso, mas intrujão, do outro. Esse tipo de comparações, esta confusão de valores põe-me fora de mim. No livro de Foucault é frequente a referência à «finitude antrop

Correspondências misteriosas

O Oráculo Portátil de Baltasar Gracián lembra, pelo tom, o Tao Te King . Mas é possível que entre estes dois livrinhos haja analogias mais profundas, correspondências misteriosas. É uma ilusão da minha parte? Ou trata-se de uma impressão legítima? A verificar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

O abeto

Assim como alguns se lembram de forma precisa da data do seu primeiro ataque de asma, eu posso indicar o momento do meu primeiro acesso de tédio aos cinco anos. Mas para quê? Sempre me entediei muito. Lembro-me de certas tardes em Sibiu; quando estava sozinho em casa, atirava-me para o chão sob o efeito de um vazio intolerável. Era adolescente, o que quer dizer que vivia mais intensamente os humores negros que por vezes enlutavam a minha infância feliz. Terrível tédio generalizado , em Berlim, em Dresden sobretudo, depois em Paris, sem esquecer o meu ano em Brasov quando escrevi Lacrimi si Sfinti —  Jenny Acterian disse-me que era o livro mais triste já escrito.  Neva. Penso naquele inverno (1937?) quando escrevia Lacrimi si Sfinti em Brasov — bem no alto da colina (Livada Postii) de onde tinha vista para as montanhas. Que solidão! Foi o ponto culminante da minha carreira de aborto elegíaco.  De novo esta vontade de chorar que experimentei em Brasov, quando escrevia Lacrimi si Sfinti

A alma que perdeu as asas

Há vinte e três anos (em 1937) escrevi um livro inteiro sobre lágrimas. E depois, sem derramar uma única lágrima, nunca mais deixei de chorar.  Quantas horas não terei passado a pensar nas lágrimas que não derramei, que não pude derramar! Vivi toda a minha vida com a sensação de ter sido afastado do meu verdadeiro lugar; se as palavras «exílio metafísico» não tivessem nenhum significado, a minha existência dar-lhe-ia um. Não podemos ser menos deste mundo do que eu — por isso é que pensei tanto em lágrimas. Podia escrever um livro inteiro sobre elas; aliás, escrevi um em romeno . Sentir a própria carne a chorar, o sangue a carregar lágrimas, é do interior de sensações semelhantes que se compreende Plotino quando ele diz que a existência cá em baixo é «a alma que perdeu as asas».  Ter escrito um livro inteiro sobre lágrimas (e santos) — de certeza que isso tem um significado profundo. Tudo o que escrevi reduz-se a isso, a lágrimas agressivas .  Um troglodita e um esteta .   Emil Ciora
Duvido de tudo o que faço. É um defeito que já nem me interessa ultrapassar, digamos que aprendi a tolerá-lo. Sem competências académicas para traduzir Cioran, sei contudo que chego lá quando, a meio das traduções dos Cadernos , começo a chorar ou a rir-me.

Estofo de escritor

X escreve-me a dizer que gostava de me enviar um jovem muito leal , com carácter, etc., para que lhe dê alguns conselhos em assuntos literários. Respondo-lhe que não lhos posso dar porque não há conselhos nenhuns; mas o verdadeiro motivo da minha recusa é que à priori é duvidoso que este jovem moralmente irrepreensível tenha estofo de escritor. — Não são as nossas qualidades, são os nossos defeitos que prometem .   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Combate

Traduzir Cioran não dá créditos em filosofia mas, se nos esforçarmos um bocado, equivale a um curso de língua francesa digno da Sorbonne (da Cantina à Capela).  O meu combate com a língua francesa é um dos mais duros que se pode imaginar. Vitória e derrota alternam — mas não cedo. É a única área das minhas actividades onde mostro algum encarniçamento. Em tudo o resto, faço questão de vacilar.  Em luta com a língua francesa: uma agonia no verdadeiro sentido da palavra, um combate onde fico sempre por baixo.   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Sombra

Ter medo da sua própria sombra. Como não ter medo? Tenho cinquenta e cinco anos e é a primeira vez na minha vida que «percebo» que tenho uma sombra — e não sou eu que a projecto, é ela que me projecta a mim. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972