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Mensagens

Pantufas

No início de Focus , Newman acorda a meio da noite com um grito vindo da rua. Levanta-se e espreita pela janela. Lá fora, uma mulher está a ser atacada por um homem. A mulher clama por socorro. É então que Arthur Miller dispara: «Newman lembrou-se que estava descalço. Sem pantufas não podia pensar em sair para pôr termo àquela cena.»

Uma cena de «Aftersun»

O pai está na casa-de-banho do quarto de hotel, curvado sobre o lavatório, a escovar os dentes. De repente, levanta a cabeça e cospe na sua imagem, reflectida no espelho. A câmara fixa o rosto «estilhaçado» do pai. O pai sai de campo. A tela inteira é agora um espelho «partido».
Os tipos da Sight and Sound acham que (ainda?) percebo alguma coisa de cinema e pediram-me para participar na lista dos melhores filmes de sempre. Como gosto de comédias de enganos, baralhei a lista de há 10 anos e mandei-lhes uma sequência de filmes para tempos difíceis .  Para reforçar a ilusão, recuperei um texto que escrevi em 2012 sobre O Gebo e a Sombra : o início é enigmático (remete um disparate anterior) e o final muito estimulante. Dedico-o aos miúdos que protestam — que não lhes falte a garra.  Uma saturação de signos magníficos  Esquecendo o assunto russo , gostava de sublinhar o trabalho meticuloso  de Manoel de Oliveira na construção de imagens e a forma como esses quadros — a palavra quadros traz já em si a luz, a construção de cores e da escuridão —, ancorando na história do cinema, nos levam por caminhos paralelos à história de Gebo, também eles plenos de significados. [A velhice de Manoel de Oliveira é um grande trunfo e seria benéfico iniciar uma discussão sobre o

No metro

Quando são surpreendidas sem bilhete ou com o passe caducado, algumas pessoas tentam escapar, outras protestam, outras ainda arranjam desculpas. Esta manhã, os seguranças surpreenderam um tipo sem bilhete que não tentou escapar, não protestou, não arranjou desculpas. O homem baixou a cabeça. Fixou um olhar submisso no chão. E pronto.

Uma família em Bruxelas

Além disso vejo ainda um grande apartamento quase vazio em Bruxelas. Só com uma mulher geralmente de roupão. Uma mulher que acaba de perder o marido. (...) Para traduzir o livro de Chantal Akerman, mudei de método. Traduzi tudo de uma ponta à outra (não são muitas páginas) e depois fui trabalhando esse rascunho em blocos, alguns fáceis, outros muito complicados. Por fim, a parte mais difícil: garantir musicalidade, um ritmo de cantilena porque o texto é quase um monólogo e deve ser dito e ouvido. Lembrei-me de Graça Lobo a dizer a Molly Bloom ou da criada Zerlina tão extrema e foi desse modo teatral que me aproximei de Natalia Akerman — pela voz.  Ando nisto desde finais de janeiro: ponho e tiro palavras, mudo-as de lugar, substituo, volto a substituir.  Às vezes dou por mim a falar com as palavras simples e as repetições de Natalia e rio-me; mas à semelhança do livro, há um lado terrível que fica na sombra (a mãe de Chantal é mestre do fora de campo) e tenho medo de sonhar com Natalia

No buraco do coelho

Hoje sonhei que um realizador de quem gosto muito andava a pintar as paredes lá de casa. Não estava a fazer um bom trabalho, desenhava uns arabescos pastosos com a tinta que nem sequer era muito branca, mas amarelada e brilhante e as paredes pareciam um bolo decorado com demasiado chantilly e já com alguns dias — quer dizer, as paredes metiam nojo. Mas como era quem era, em vez de dizer que aquilo estava mal feito eu estava a tentar compreender.
Em contrapartida, eu tenho uma fotografia (muito gira) da Maria Filomena Molder na televisão. 

Equipamentos eléctricos

Leio a entrevista a Maria Filomena Molder que saiu na edição de domingo do Público . O texto de apresentação da entrevistada começa assim: «Não tem telemóvel, nem televisão…» Uma informação relevantíssima, é certo, mas bastante incompleta. O leitor fica sem saber se Molder também não tem frigorífico, nem máquina de lavar.

Lógica do Terceiro Termo Incluído

Laurent Devanne: (...) alors que vous êtes dans une démarche inverse où c’est plutôt les temps morts qui vous intéressent...  Chantal Akerman: ... et qui révèlent les morts. Écoutez, je déteste les trucs binaires. Je pense que dans la victime, il y a parfois du bourreau et dans le bourreau, il y a parfois de la victime. Regarder le monde d’une manière binaire, c’est rester dans tout ce qu’on a eu dans ce siècle. Il y avait le capitalisme, le communisme, je pense que c’est une vision étriquée. Je ne sais pas si ses films sont comme ça. Mais quand vous dites « bourreaux et victimes », je ne veux pas de situation étriquée et binaire. Il faut toujours qu’il y ait un 3ème terme.

Violência, tortura, morte e efeitos especiais

Faz hoje um ano que os militares russos invadiram a Ucrânia. Para assinalar a data, a Antena 1 (estação pública de rádio) criou um separador com uma espécie de «música épica», meio pop, meio Wagner de fancaria, acompanhada por uma voz grave a debitar umas banalidades excitantes sobre a guerra. Uma coisa tão séria e informativa como o trailer de um filme de super-heróis de Hollywood.

Palavras familiares

Estou a traduzir um texto da Chantal Akerman em que ela usa palavras da mãe. Ela é boa a usar as palavras da mãe, consegue agarrar a voz e os medos e a escuridão e o amor que essas palavras encerram. Para fazer o meu trabalho de intermediária, tive de convocar as palavras da minha mãe e da minha avó e, mais uma vez, dei-me conta do enorme património que me deixaram: palavras muito simples, imperfeitas, quase esbotenadas, mas com uma potência desarmante.  Quando usamos as palavras dos mortos acontece uma coisa curiosa, é como se nos encontrássemos a meio do caminho, eles um pouco vivos e nós um pouco mortos.

Quando?

Tinha setenta e muitos, talvez mais. Caminhava pelo passeio, arrastando atrás de si um daqueles expositores de folhetos das Testemunhas de Jeová. Demorou dez minutos a percorrer cem metros. O cartaz que cobria o expositor dizia: «Quando acabará o sofrimento?»
Calum Aaron Patterson tem qualquer coisa de Seymour Glass.  

Miúdos

Na maior parte dos filmes que tenho visto as personagens principais são miúdos. Como agora vou tão pouco ao cinema não pode ser uma tendência global, terá de ser outra coisa mais interior.  Desconfio que é uma necessidade de contrariar o pessimismo que toma conta de tudo de um jeito quase cínico  — já só confio nos miúdos para uma tarefa tão difícil.

O castigo de Adão

Para o crítico profissional (já fui um deles), ir ao teatro é o castigo de Adão. A peça é o mal que ele é pago para suportar com o suor de seu rosto: quanto mais depressa terminar, melhor. Isto parece colocá-lo em irreconciliável oposição ao frequentador de teatro que paga, e para quem quanto mais longa a peça, tanto mais entretenimento recebe em troca do seu dinheiro.  (...) Pois em Londres os críticos são amparados por considerável número de pessoas que vão ao teatro como muitos outros vão à Igreja: para exibir suas melhores roupas e compará-las com as dos outros; para estar em dia com a moda e para ter algum assunto nos jantares de gala; para admirar um actor favorito; para passar a noite em qualquer parte, menos em casa; em suma, por qualquer motivo ou por todos os motivos, excepto interesse na arte dramática em si. (...) Assim, das poltronas e da imprensa ergue-se uma atmosfera de hipocrisia. Ninguém diz com franqueza que o teatro verdadeiro é uma grande maçada e exigir das pesso

O mar, o mar

Voltei a sonhar com o mar: estávamos a mudar o sistema operativo do mar numa cabine lá no alto, uma espécie de farol horizontal sobre as dunas. Não sabíamos como é que aquilo ia correr, nunca tinha sido feito. Havia água a toda a volta mas era o mar à frente que metia medo pois as correntes eram muito fortes e deixavam sulcos profundos. O mar parecia um desenho feito de cabelos azuis e castanhos e estavam todos enredados e sombrios. De manhã, no metro, tentei guardar as imagens na memória e, talvez porque se sentou ao meu lado um rapaz a ler uma bíblia com capa castanha, logo a seguir ocorreu-me que deus também podia ser um sistema operativo —  mas isso não é um cliché?   Foi aí que percebi: ei, lá estou eu a escrever canções para a Laurie Anderson .