Avançar para o conteúdo principal
Os tipos da Sight and Sound acham que (ainda?) percebo alguma coisa de cinema e pediram-me para participar na lista dos melhores filmes de sempre. Como gosto de comédias de enganos, baralhei a lista de há 10 anos e mandei-lhes uma sequência de filmes para tempos difíceis

Para reforçar a ilusão, recuperei um texto que escrevi em 2012 sobre O Gebo e a Sombra: o início é enigmático (remete um disparate anterior) e o final muito estimulante. Dedico-o aos miúdos que protestam — que não lhes falte a garra. 


Uma saturação de signos magníficos 

Esquecendo o assunto russo, gostava de sublinhar o trabalho meticuloso  de Manoel de Oliveira na construção de imagens e a forma como esses quadros — a palavra quadros traz já em si a luz, a construção de cores e da escuridão —, ancorando na história do cinema, nos levam por caminhos paralelos à história de Gebo, também eles plenos de significados.

[A velhice de Manoel de Oliveira é um grande trunfo e seria benéfico iniciar uma discussão sobre o modo como a sua idade provecta permite um olhar acumulado e rico de história em vez da aceitação tardia que as instituições fazem do seu cinema, uma aceitação tantas vezes falsa ou interesseira — porque é que, por exemplo, a projecção d' O Gebo e a Sombra na Assembleia da República não levou os deputados a um gesto reflexivo de compreensão? de que servem as palmas quando nós precisamos de outro tipo de acção?]

Mas voltando às imagens, gostaria de destacar três relações de diálogo. A primeira imagem, no porto, lembra-nos, ou pelo menos lembra-me a mim, Sicilia!, de Danièle Huillet e de Jean-Marie Straub: um homem que regressa a casa, a pobreza como herança e também a injustiça dessa sorte. Mas João não é Silvestro, tem uma costela dostoievskiana, não aceita o seu fado, seguirá outro caminho.

A casa de Gebo é despida de ornamentos, apenas alguns ramos de ervas pendurados; uma mesa e quatro cadeiras; uma toalha de croché, branca, sobre o móvel onde Gebo guarda os livros de contabilidade e a pasta do dinheiro; um prato com maçãs sobre a toalha (como as maçãs de Cézanne), Um candeeiro, um castiçal. As paredes gastas e vazias parecem a última casa de Gertrud — um outro tipo de pobreza, voluntária e desejada, oposta à desta família, é convocada apenas pelo olhar mas permite-me compreender melhor o comportamento furiosamente honesto de Gebo e o seu amor desmedido pela mulher (tão comovente, a composição de Michael Lonsdale!)

E desde o princípio o tom verde que associamos a certos filmes de Bresson e, ao contrário do código usual das cores, significa que não há saída, para a maior parte das pessoas não há nunca saída no mundo senão a violência.


Comentários

Luis Eme disse…
(Não vi o filme, o mais sensato era não dizer nada. Mas o tema interessa-me, gostava de saber o que a idade maior trouxe aos filmes do nosso Manoel, de positivo e negativo, até por ser muito criticado, inclusive pelos seus pares - o Vasconcelos foi o mais contundente -, por não estar em casa de pantufas, o que eu não concordo nada, diga-se de passagem. Agrada-me muito que o Manoel de Oliveira gostasse tanto de viver e de filmar, e o deixassem ser livre, criar, Cristina...)
c disse…
Bom, o Manoel de Oliveira já era um bocado velho quando começou a fazer filmes. Assim de repente não sei dizer como é que isso influenciou os seus filmes — uma certa liberdade? (os velhos — principalmente quando não são pobres — são mais livres) um certo pessimismo? uma certa doçura? ou safadeza? Talvez tudo junto.

As críticas são por causa do dinheiro, é óbvio, os famosos subsídios e essa treta de fazer filmes para o público.